Vá em paz, Mirna Grzich! Nenhum rótulo será suficiente para descrevê-la

Por Liane Alves

Neste 10 de março de 2018, Mirna Grzich (1951-2018) nos deixou para sempre. Mas ficam a voz suave e inconfundível das suas meditações e seu forte desejo de um nível maior de consciência para a humanidade.

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Como descrever uma mulher que resumiu toda uma época? Toda uma geração? Com adjetivos como revolucionária, guerreira, libertária, ativista? Uma aquariana legítima, um ser do futuro, a mais conhecida representante da New Age entre nós? Ou seria melhor falar dela como uma jornalista que trabalhou incansavelmente para a evolução da consciência durante sua vida?

A verdade é que nenhum rótulo é suficiente para descrever Mirna Grzich. Como em uma mandala, as diversas Mirnas se abrem e se sobrepõem uma à outra. Impossível dizer qual é a mais verdadeira, qual o seu retrato mais fiel. A única variante que permanece em todas as imagens é o seu sorriso maroto de quem sabe de coisas que nós nem sequer imaginamos.

O primeiro desenho que é possível ver nessa mandala é o de uma garota loirinha de uns seis anos de idade na beira de uma praia no Rio de Janeiro, onde nasceu em 1951. Ela percebe a presença de seu anjo da guarda. Se sente protegida, com tanta confiança nele, que é capaz de lhe dirigir perguntas. A sua curiosidade sobre a vida, o universo, as estrelas, é imensa. É uma constelação de porquês que vão se repetir por toda sua vida, até ela alcançar respostas, até se estruturar em sua mente um novo tipo de pensamento e atitude. E assim ela mesma se transformar em anjo de outras pessoas, com acolhimento, compaixão e sabedoria.

Anos mais tarde, forma-se a segunda mandala. Ela é uma jovem atriz e jornalista, está em São Paulo. Seu mestre espiritual se chama Agenor, tem 92 anos, e ela se encanta pelo mundo dos orixás e das religiões afro-brasileiras. Conhece o poder das ervas, se apaixona pelos tambores e atabaques. Participa de uma república no bairro do Bixiga em São Paulo. Trabalha com e diretora teatral Ruth Escobar e convive com artistas como Itamar Assunção, Arrigo Barnabé e atrizes como Tânia Alves e Imara Reis, cuja amizade preserva até o final de sua vida. “Mirna teve uma vida rica e brilhante. Era um dínamo, com capacidade de criação e produção monumentais. E estava sempre antenadíssíma com o que existia de mais avant-garde no pensamento humano”, conta Imara.

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Ativista, luta pelas mulheres, pelo negro, pelo índio e pela justiça social. Mas é a espiritualidade que fala mais alto ao seu coração. Continua com o candomblé até que o mestre Agenor finalmente lhe confessa: o povo dela não é aquele. O povo dela é o de Buda. Mas até chegar esse momento, ás águas da vida ainda iriam rolar mais um pouco.

No terceiro desenho é possível se ver a buscadora espiritual que, ainda muito jovem, mergulha fundo nas filosofias orientais, principalmente o hinduísmo. Ela veste túnicas cor de laranja sobrepostas por mil colares. É o auge do Flower Power e ela elege Rajneesh, hoje mais conhecido como Osho, o seu guru. E vai para o ashram do seu mestre no Oregon, nos Estados Unidos. ”No ashram, ela esfrega o chão, trabalha na horta, limpa banheiros. Mas aprende, sobretudo, o que é a meditação”, diz Marli Gonçalves, que trabalhou com Mirna na revista Singular & Plural. E é à prática da meditação que Mirna Grizch vai se dedicar toda sua vida. E isso a leva a se interessar pelo povo de Buda.

Túnica cor de vinho, rosários tibetanos que deslizam sem suas mãos, iniciações, longas práticas e mil prostrações. Chagdud Tulku Rinpoche, que vem morar no Brasil depois visitar o pais regularmente durante anos, é o seu novo mestre. É onde ela mais se aprofunda, até se iniciar no Dzogchen, o conhecimento mais sublime vindo do Tibet. É também Mirna quem cobre a primeira vinda do Dalai Lama ao Brasil, durante a Eco 92. Depois ela conhece outras linhas do budismo, até chegar ao seu último mestre, Tenzin Wangyal, do budismo Bön, que lhe ensina a Yoga dos Sonhos.

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Mas é como a musa da New Age que muita gente conhece Mirna Grzich. Sua voz suave e as músicas da Nova Era embalam toda uma geração durante dez anos em rádios de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, de 1987 a 1996. Os primeiros textos do programa Música da Nova Era eram assinados pelo jornalista Luís Carlos Lisboa, e falavam de uma mudança de consciência, que incluía uma espiritualidade abrangente, valores mais humanos, mais ética e sustentabilidade. E, sobretudo, amor. Nesta quinta mandala, Mirna veste turquesa, usa pedras semipreciosas e medita com cristais. Como muita gente naquela época.

Visão de futuro

Sua visão de futuro a faz conceber um evento marcante em 1995, o Imaginária. Durante uma semana o futuro do mundo é discutido nos palcos do SESC- São Paulo. As palestras abalam os alicerces de muitas pessoas. A futurista Rosa Alegria, por exemplo, tem coragem de largar seu emprego algum tempo depois para dedicar-se ao estudo do futuro após assistir apenas dois dias de exposições. Aqui é a Mirna guerreira visionária que toma conta da mandala. Se compromete com tudo que é relativo ao que está avante de sua época. É revisora do primeiro livro de Fabio Novo, Holoplex, e faz o prefácio do segundo, Hiper, considerados marcos significativos nesse campo.

Nesta outra imagem que se abre agora, os seres angélicos voltam para a vida de Mirna Grzich. Ela escreve o seu primeiro livro sobre eles, Anjos, que vende dois milhões de exemplares (o segundo livro sobre o tema, Anjos Agora, viria 15 anos depois, no começo do milênio). Ela já é conhecida nacionalmente como jornalista. Sua editora de arte preferida é Mabel Böger Carraza, que depois se torna muito amiga. Mirna lança a revista PLANETA Meditação no final da década de 90 e que foi publicada durante cinco anos (de 1998 a 2003). Depois, com a produtora Patrícia Aguirre, a coleção de 16 CDs chamada de Quem é você?, com seus textos e reflexões. “Tive a honra e a alegria de participar de vários projetos com ela. Eu fazia a seleção musical e cuidava dos direitos autorais, ela escrevia os textos”. As duas também trazem ao Brasil, Howard Lee, o instrutor de Kung Fu de Carlos Castaneda. Estamos no começo do segundo milênio.

Nos últimos cinco anos, podemos ver Mirna acolher pessoas com lições de sabedoria e palavras de estímulo e coragem na penúltima mandala. O veículo para isso é o Tarot, o Tarot da Alma, como Mirna o chama, que ela aprende na Califórnia na década de 80 com uma grande mestra americana, Ma Sona Prem. Embora as cartas estivessem à sua frente, é bem possível que o seu coração falasse mais alto. Mirna é guiada pelo seu conhecimento, mas, sobretudo, pela sua intuição. Sensível, sim, mas não “boazinha”. De gênio forte, arruma alguns desafetos pela vida. Mas a maioria a ama incondicionalmente. “Autoritária, terna, amorosa e sábia; esses são os quatro eixos de Mirna”, diz Emanuel Gonçalves Amarante, seu primo, que pretende escrever sua biografia.

No final da vida, todos seus últimos recursos são investidos num aplicativo, Medita!, realizado conjuntamente com o produtor Maurício Grassmann, onde ela faz reflexões sobre vários temas da vida: da mudança ao recomeço, do fluxo aos obstáculos. Seu sonho: encontrar alguém que bancasse o projeto para que o app pudesse ser baixado gratuitamente. Generosa Mirna. Ainda pensa em criar uma revista sobre vários assuntos para ser editada junto com o aplicativo Medita!. E busca apoio financeiro junto a empresários para isso.

“Ela uniu tribos, quebrou crenças e paradigmas, sempre na direção da Cultura de Paz. Era ecumênica em seu coração”, diz sua amiga Frances Rose, do projeto Danças Circulares e ligada a Comunidade de Findhorn, na Escócia.

Na última mandala que se abre, Mirna está, muito a contragosto, num hospital público municipal de São Paulo. Segundo sua astróloga Xenia Quirino, todo esse triste panorama já está marcado nos céus. Mas no hospital Mirna é tão bem tratada, e cercada de tantos amigos, que se arrepende não ter vindo antes. Complicações diante de um quadro grave de infecção generalizada, porém, a conduzem à morte. No leito da enfermaria, sua expressão é serena, tranquila. Parece feliz. Como se rodeada de Anjos fosse.

Mirna Grzich: Rio de Janeiro, 1951- São Paulo, 2018.

Fonte: Liane Alves é jornalista e escreve há 15 anos boa parte das matérias de capa da revista Vida Simples. É uma homenagem dela à desbravadora que foi Mirna Grzich.