O caos e a ordem: as faces do colecionismo patológico

por Regina Wielenska

Recentemente pediram-me para comentar sobre o sofrimento das pessoas que são desorganizadas e arcam com as consequências nefastas desse padrão de comportamento. Não há um só jeito de ser des/organizado.

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Poderia comentar sobre aqueles que não planejam suas rotinas e se perdem em meio aos deveres e compromissos, sofrem com atrasos e tarefas acumuladas. Há também pessoas que são atrapalhadas em aspectos mais abstratos e com repercussões indesejáveis na vida prática, em aspectos não necessariamente ligados ao gerenciamento do tempo (por exemplo, na maneira como organizam e expressam suas ideias, ou quando lidam com suas finanças).

Assistir um trecho do programa da apresentadora americana Oprah Winfrey sinalizou para mim outra possibilidade, quero comentar sobre o colecionismo patológico, um quadro psiquiátrico ainda negligenciado por profissionais de saúde, e pouco conhecido da população em geral.

Refere-se a um padrão comportamental caracterizado pelo acúmulo de quantidades excessivas de itens com questionável valor utilitário ou material, associado à intensa dificuldade para fazer o descarte desses mesmos objetos, resultando ao longo do tempo, em prejuízo da qualidade de vida do indivíduo.

Já participei do tratamento de casos assim, escrevi a respeito em periódico científico, e posso atestar que, geralmente, a vida dos portadores do transtorno resulta numa absoluta falta de ordem e arrumação, que consome as pessoas, limita suas vidas e tem consequências devastadoras. A pessoa provavelmente busca segurança e controle em sua vida, guarda a todo custos objetos os quais acredita possam lhe ser remotamente úteis, e acaba por produzir o caos incontrolável.

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Colecionar pode ser um hobby. Além do propósito de ampliar a coleção (selos, bonecas de época, canetas, aeromodelos, latas de batata frita industrializada ou de cerveja, etc), colecionadores interagem entre si, buscam aprender mais sobre seu objeto de interesse, sentem-se orgulho de seus pertences e sentem prazer ao exibi-los a quem saiba apreciá-los. Neste caso, nada há de prejudicial, que preocupe especialistas em problemas de comportamento.

No entanto, há quem acumule descontroladamente, sem critério e organização, coisas como papéis (comprovantes bancários de décadas, notas fiscais jurássicas, papeizinhos para anotações, recortes de revistas), roupas imprestáveis, latas, potes de vidro, pedaços de barbante, jornais velhos, a lista é interminável. Descartar, por sua vez, é um verbo impossível de ser conjugado.

O argumento básico de quem age assim é que aquilo "pode vir a ser necessário, sabe-se Deus quando" e aí a pessoa estará preparada para a ocasião. O problema é: quem conseguiria achar aquele parafuso específico, guardado em meio a muitas pilhas de outras coisas, num cômodo quase intransitável?

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Há poucos anos, na cidade de São Paulo, os vizinhos de uma senhora, residente no bairro do Itaim Bibi, precisaram chamar as autoridades sanitárias. O odor que emanava da casa era insuportável; aranhas, escorpiões e baratas formaram ali um condomínio. Em meio a pilhas infectas e amontoados desordenados, encontraram até um automóvel. Esse é um caso extremo, explorado pela mídia na época. A desocupação foi feita à força, sob ordem judicial, e a pobre senhora, encaminhada – contra sua vontade – para cuidados de saúde.

Os portadores, em sua maioria, costumam manter alguma visão crítica sobre sua condição. Embora convictos de que acumular tantas coisas seja lógico e razoável (recomendo aos familiares que nunca tentem contra-argumentar, porque serão derrotados). Usualmente dizem que chegará o dia em que conseguirão se organizar, comprarão mais prateleiras, containeres, terão uma casa maior, farão uma superarrumação e aí todos verão que a pessoa estava certa em guardar tudo aquilo.

Sob a crença de que apenas precisam ter chance de arrumar tudo melhor, passam anos sem receber visitas, devido ao constrangimento produzido pelo escrutínio alheio. Cômodos ficam intransitáveis, até a cama pode ter sua área livre reduzida. Falta espaço para sentar, fazer refeições, praticar hobbies, receber visitas e hóspedes, dar festas, para viver. Há casos, menos frequentes, de colecionismo de animais. A pessoa vive em meio a cães e gatos, geralmente coletados da rua, em plena imundície e ausência de cuidados como alimentação apropriada, limpeza, vacinação e outras práticas de quem se preocupa com a guarda responsável.

É doloroso constatar quer esse comportamento não surge em sua exuberância máxima da noite para o dia. É trabalho de formiga. Por anos a fio, as coisa se processam disfarçadamente, em alguns casos com a cumplicidade, ativa ou passiva, de algum membro da família. Examinando a história pessoal e familiar, é comum identificar casos de depressão, Transtorno Obsessivo Compulsivo, compulsão por compras, entre outros transtornos. Também chama a atenção que a vida dessas pessoas costuma ser empobrecida do ponto de vista psicológico, seja como decorrência de perdas, negligência parental, abusos, déficits em habilidades de comunicação (inassertividade, dificuldade na expressão de necessidades e de sentimentos em geral) e /ou sociais.

Tratamento

Há tratamento? Sim. Quase nunca a solução é simples, isenta de embates, conflitos, hesitação e recaídas. O apoio de especialistas e a orientação da família são fundamentais. O argumento básico, a ser usado com o portador, não passa pela ênfase na insensatez de armazenar tanto lixo. Na verdade, buscamos discutir quais os valores básicos da pessoa: seja propiciar uma vida de qualidade aos que ama, ter espaço para convívio, zelar por um ambiente sem pó, mofo e insetos, para assegurar a saúde de todos, etc.. São criadas estratégias para iniciar o descarte, classificar o que deve ser mantido e o que pode ser vendido, reciclado, doado, ou jogado no lixo sem hesitação. Define-se um limite para o quanto de cada item poderá ser mantido na casa, qual área deverá ser preservada para circulação e outros usos que não o armazenamento. O bloqueio do colecionismo é um projeto amplo, trabalhoso e vale cada minuto do esforço.

Tão importante quanto reorganizar a vida de fora para dentro, é um investimento de longo prazo na terapia, rica oportunidade para identificar o que influenciou e ainda mantém o empobrecimento dos relacionamentos e dos interesses na vida. Intervir sobre essa armadilha é essencial. Do contrário, estaremos desconsiderando a totalidade da pessoa e focando apenas em uma dimensão do indivíduo, seu patológico excesso comportamental. De certo modo, a intervenção envolve recriar o ambiente doméstico, intervir de forma ampla sobre a qualidade de vida e rever o que realmente faz diferença para a serenidade emocional e vivência do prazer.

Para aprender mais a respeito, sugiro buscarem informações em

www.ocfoundation.org/hoarding/
http://www.oprah.com/slideshow/oprahshow/oprahshow2_ss_20050506
http://www.eatmedaily.com/2009/08/hoarding-rotten-food-on-aes-hoarders-video/
http://www.onlineorganizing.com/NewslettersArticle.asp?article=449&newsletter=go
http://www.psicolog.com.br/download.php?view.7