Dos efeitos da música irlandesa sobre nuvens sombrias

por Regina Wielenska

A vida tem coisas muito tristes. A mãe de uma amiga, com cerca de noventa anos, foi internada às pressas, com problemas graves, apresenta também significativa perda cognitiva, entre outros percalços da idade avançada.

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Eu e a filha dela, amigas de uma vida inteira, temos conversado, partilhando angústias, esperanças e temores. Viver isso de perto implica entrar em contato com a orfandade que nos rodeia e também com a visão de nossa finitude, venha esta acompanhada, ou não, pela decadência funcional. Também somos levados a constatar que nem sempre conseguimos fazer muito por quem sofre. Podemos dar as mãos, ficar ao lado, ajudar aqui e ali. Nada mais. Esta experiência nos ensina a aceitar que não somos capazes de controlar tudo, de mudar o mundo conforme nossos desejos e humores. Há coisas ruins a se viver, escapar é impossível, resta seguir em frente com dignidade.

Noutro dia um vazamento na tubulação dos sprinklers em meu consultório resultou num estrago danado, foram danificadas algumas das placas de isolamento acústico e parte do gesso, elementos do forro na recepção e sala de consulta. Vou gastar um dinheirão pra consertar, e não tem jeito. Deu raiva e tristeza, fiquei com pena de mim por uns dias.

Outra coisa: na semana passada trabalhei muito e dormi pouco, escrevendo textos, preparando aulas, corrigindo relatórios de alunos, entre outras coisas. Eita cansaço!

Pra que lamentar isso publicamente, na coluna sobre comportamento? Um tanto de discrição não seria elegante? Na verdade estou partilhando com vocês porque queria contar que em meio a tudo isso, eu havia sucumbido ao convite de uma amiga, pois havíamos comprado ingressos para um musical no domingo e um show de música celta no meio da semana. Confesso que a segunda-feira começou mais alegre, depois da dose de energia do musical e da companhia da amiga que me fez rir e pensar em outras coisas. Gostamos muito. Na quarta-feira o cansaço era tamanho que eu considerei até dar o cano e doar meu ingresso para outra pessoa. Mas eu sabia que iria me arrepender. Atravessei a cidade para chegar a tempo ao show de música e dança irlandesa. Jantamos nas imediações, aguardando o espetáculo já de uma forma relaxante. Conseguimos excelentes assentos, teatro quase cheio, com gente de todas as idades.

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O milagre começou ao apagar das luzes. Beleza e simplicidade, maestria e lirismo, estava tudo no palco, ao ritmo do sapateado, aos acordes de instrumentos que sequer sabemos nomear. Que noite sensacional, a jovem companhia vem de longe e marca o coração da audiência, transmite magnificamente seu amor pelas danças e canções da Irlanda distante. Interessante é o contágio: um público cansado do trânsito, que teria compromissos no dia seguinte, dali a poucas horas, estava a bater palmas, acompanhando, como se não houvesse amanhã, o ritmo deste povo de belas terras frias.

Este é o poder da arte: algo que nos alimenta, reanima, desperta o melhor de nós, nos aproxima do belo, do inquietante ou do diferente, revela o oculto e muda nossas percepções e sensações. Para dores da alma e do corpo recomendo a arte.

A vida da gente funciona assim: sem mais nem menos surgem problemas, os mais variados, alguns quase despencam sobre nossas cabeças, metaforicamente ou de fato. Deles não há como escapar. Mas a gente pode reequilibrar os pratos da balança: caçadores de inquietações e emoções que somos, vamos por exemplo, ao encontro das artes. Damos um jeito de nos aproximar de fontes compensatórias de prazer, novos ares que refrescam os velhos problemas, que trazem alento, energia e esperança. Isto está em nossas mãos, sair do papel de vítima e dar um trato em nossa alma. Na quinta-feira eu continuava cansada, mas dentro de mim brilhava uma luz que me deu fôlego pra chegar bem melhor ao final da semana.

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Então é só isso, ou isso tudo: o ruim é parte da vida, e podemos temperá-lo com o que de belo houver. Vamos em frente, cantarolando histórias de amor, de batalhas, de partidas e chegadas.