Repassar ou não os e-mails, uma questão de senso crítico e respeito

por Regina Wielenska

Escrever sobre comportamento, um tema tão vasto, abre espaço para a discussão de assuntos que, aparentemente, pertenceriam mais ao âmbito dos especialistas em tecnologia de informação.

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Gostaria hoje de conversar sobre como interagimos com um tipo específico de conhecimento: as (des)informações divulgadas por e-mails. Transitarei em meio a questões éticas, científicas e sociais, que se entrelaçam, e proponho refletirmos sobre alguns desses aspectos de nosso comportamento, nossa relação com temas divulgados via correio eletrônico.

Assim, partilho com vocês meu (obsessivo?) desconforto com um fenômeno que assola caixas postais. Não me refiro aos vírus e outros programas maliciosos que destroem nossos arquivos do computador, ou se infiltram nas máquinas com a finalidade de roubar senhas, causando danos frequentemente irreparáveis. Para tal problema, na maior parte dos casos, um antivírus atualizado diariamente é solução quase certeira.

No entanto, o combate de outra praga, mais sutil e igualmente perniciosa, exige ações complexas como demonstrar senso crítico, responsabilidade e muito respeito ao outro. Por exemplo, certa vez enviaram-me um arquivo em power point com texto atribuído a Shakespeare. Surpreende-me que o autor do arquivo anexado (quanto tempo perdido por nada) e quem depois o repassou não tenha se dado ao trabalho de desconfiar da suposta autoria.

Absolutamente nada correspondia ao jeito de escrever, aos temas de interesse, ao contexto sóciocultural no qual Shakespeare viveu e produziu suas obras. O remetente não refletiu com profundidade sobre o que recebeu, e simplesmente encaminhou o material aos amigos e conhecidos porque "o texto pareceu tão bonitinho e criativo". Autores conhecidos como Mário Quintana, L. F. Veríssimo, Martha Medeiros, Jorge L. Borges, e muitos outros, são vítimas regulares desse engodo.

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O problema tem desdobramentos. Há casos de autores novos, gente talentosa, porém menos conhecida pelo grande público, publicarem sua crônica, poema ou outra modalidade de texto em algum blog ou veículo de menor expressão e, algum tempo depois, se depararem com seu trabalho sendo atribuído a um grande nome, da literatura brasileira ou de outro país. Perdem o direito à autoria do seu trabalho, arduamente produzido. Quer dizer que e-mails com apresentações de slides em anexo são irrefletidamente encaminhados porque o valor inerente das palavras mantém relação de direta proporcionalidade com o renome ou fama de seu suposto autor? Comete-se, no mínimo, um desrespeito com quem de fato escreveu a obra e com aquele a quem, indevidamente, se atribui a autoria. É duplo constrangimento quando o texto divulgado é flagrantemente ruim, preconceituoso, tacanho e, ainda por cima, é atribuído a quem jamais o teria escrito ou referendado seu teor.

Conheci o blog de Rosangela Aliberti (www.rosangelaliberti.recantodasletras.com.br) quando decidi investigar se um texto que me fora enviado realmente tinha sido escrito por determinado autor. Tive o prazer de descobrir que ela, e muitas outras pessoas espalhadas em comunidades virtuais dão a César o que é de César, e se preocupam, ao menos na seara da literatura, em desfazer o estrago causado por esses emails. O esforço investido na produção de um texto justifica esse trabalho de defesa da autoria legítima.

Provavelmente, parte do problema que descrevo reflete a precariedade da nossa educação, especialmente em Literatura, História e Filosofia. Predomina um despreparo intelectual. Além disso, somos incentivados a reenviar qualquer coisa depositada em nossa caixa postal. A título de networking, nos socializamos enviando inverdades ou bobajadas aos conhecidos e amigos. Quer dizer que o que importa é dar o comando "encaminhar e-mail" para cultivar as amizades e, por tal razão, qualquer coisa vale?

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Falando em inverdades, o que dizer dos e-mails alarmistas e de teor descabido sobre modalidades de serviços ao consumidor, crimes, falsas substâncias químicas, doenças, mudanças na legislação e uma infinidade de outros assuntos? Em comum, trazem termos vagos (uma menina em Milwaukee…), descrevem condições dramáticas e autoridades científicas (o FDA registrou óbitos causados pela substância x contida nos xampus), assustadoras (depois do golpe, o coitado acordou numa banheira cheia de gelo e sem um dos rins), e incitam o leitor a encaminhar o e-mail para todos seus contatos, com o pretexto de ajudar mais pessoas a resolver problemas ("através do telefone 0800XXXXXX você faz boletins de ocorrência"), prevenir problemas (a vacina tal é perigosa), etc.

'Sherlock Hoaxes'

Há bons sites (pessoalmente, gosto do Snopes e do quatrocantos) dedicados a desmistificar os hoaxes, o nome em inglês para esses embustes virtuais. Há hoaxes que circulam pela web em vários idiomas. Deduzo que há quem perca tempo traduzindo inverdades. Se exercitarmos nosso senso crítico (o que requer fazer uso de conhecimentos de ciência e outras habilidades) conseguiremos desconfiar de mensagens com esse perfil, e aí não será o caso de encaminhá-las. Ao contrário, podemos colocar as palavras-chave, acrescidas da expressão hoax, num buscador na internet. Rapidamente conseguiremos avaliar se a informação procede. Isto sem esquecer que alguns hoaxes citam nome e telefone de alguém (por exemplo, "Fulano de Tal, pesquisador-chefe da instituição XYZ"), esses podem ser dados reais (a pessoa/instituição existe e, na maior parte das vezes, jamais referendou aquilo) ou fictícios (nome, telefone e instituições são Frankensteins virtuais, dados aleatórios reunidos por um fraudador, que se diverte com mentiras).

Que tal nos dar ao trabalho de telefonar e checar a veracidade? Se confirmarmos ser hoax, podemos devolver a mensagem a quem o enviou, fornecer dados que coletamos e sugerir à pessoa que seja ética e agora esclareça os fatos a todos aqueles para quem enviou o embuste. Parece pouco simpático agir assim, confrontando o amigo desavisado, impulsivo, excessivamente crédulo ou acidentalmente mentiroso, porém seremos bem mais respeitosos e daremos um freio à disseminação da inverdade.

A praga da corrente

Corrente é outra praga. Existe antes da Internet. Sua baixa disseminação explicava-se pelo trabalho que o remetente teria: copiar um texto 20 vezes, usar papel carbono ou tirar Xerox, envelopar cada uma e mandar anonimamente pelo correio a vítimas selecionadas da caderneta de endereços. Agora, com poucos cliques encaminha-se uma oração ou imagem recebida pela web, acompanhada por uma ameaça esotérica a quem não a encaminhar aos seus contatos ou, ao contrário, pela promessa de que o envio (para ao menos n pessoas em tempo recorde) resultará na ocorrência, três dias depois, de algo esplendoroso na vida do remetente.

É coerente considerar amigo a pessoa que me envia uma corrente, impondo que eu faça o mesmo com terceiros, pois do contrário serei penalizada ferozmente pelos céus? Como explicar a ausência de relatos sobre a efetiva concretização das benesses prometidas pelas correntes? Dá vontade de, numa roda de amigos, interrogar o remetente sobre no que resultou o envio daquelas correntes.

Não consigo analisar com precisão as razões que levam alguém a criar lendas urbanas e disseminá-las digitalmente. Esse comportamento não é novo. No meu tempo de ginásio (que cursei logo após a extinção dos dinossauros, diriam os desafetos) falava-se da "loira do banheiro", descrita como a aparição de uma mulher morta há anos naquele banheiro da escola. Adoraria ter acesso às origens desse mito, transmitido oralmente, por anos a fio, em tantas localidades. Considero que repassar todo e qualquer e-mail, sem primeiro submetê-lo a um escrutínio, equivale a um adulto que continuasse a acreditar na loira do banheiro e se dedicasse com empenho a avisar a todos sobre a existência do fantasma. Muito estranho, no mínimo.

Não quero ser desmancha-prazeres, quem me conhece pessoalmente sabe que partilho alguns e-mails com amigos, e somente aqueles que me autorizaram a fazê-lo; minha meta é manter a trilha da ética, responsabilidade e do discernimento. A despeito das supostas boas intenções, ainda cometo equívocos. As estatísticas, por enquanto, favorecem o lado positivo. Alguém mais se juntaria nesse propósito?