Sexualidade digital e o mundo de carne e osso

por Regina Wielenska

Há muito tempo atendi um paciente, rapaz por volta de seus vinte anos, cuja queixa principal era ter falhado ao dar início à sexta relação sexual em uma mesma noite!

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Sentia-se fracassado, temia falhar de novo, achava que tinha sérios problemas na esfera do desempenho sexual e pediu minha ajuda profissional.

Precisei atendê-lo, mas o ponto de partida foi reformular qual seria o problema. No mundo real, quantos indivíduos seriam capazes da hercúlea e desnecessária proeza à qual ele se impunha? A namorada, por sinal, tentou de todo jeito, e sem sucesso, demonstrar que estava mais do que satisfeita, e dizia com todas as letras que não via qualquer problema no ocorrido, que ele era ótimo para ela, dentro e fora da alcova. Esforço em vão.

Muitas coisas estavam por trás do comportamento do rapaz: principalmente, uma história de vida de desvalorização e negligência afetiva parental, a qual o levou a se sentir inferior, incapaz. A queixa sexual era a ponta do iceberg. A raiz do problema estava submersa nas condições de história de vida, e tinha a ver com a maneira como o rapaz foi criado pela família e aprendera se relacionar com o mundo e a avaliar o próprio desempenho.

Mas hoje discutirei apenas uma pequena parte da massa de distorções que contribuíram para a formação daquele confuso e sofrido estado de coisas. Quero comentar sobre a influência exercida pelos filmes com teor erótico ou pornográfico sobre a formação dos indivíduos. E, dissimuladamente, me farei de boba para não abordar a diferença entre esses dois termos (erotismo e pornografia) porque, do contrário, me afastaria demais do tópico central desta coluna.

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Para o presente ponto de partida, bastará prestarmos atenção ao teor dos filmes, sites e publicações que exploram o corpo humano com finalidade de estimulação sexual para quem adquire os produtos e lucros expressivos para quem produz e comercializa o material.

Entenda por que o sexo em filmes pornôs é tão distante da realidade

Primeiro aspecto, alguém já cronometrou nos filmes o intervalo entre o primeiro contato entre dois corpos e a penetração? Tudo é mais rápido do que fazer sopa de pacote. Esquecemos, no entanto, que não se recomenda consumir sopa de pacote (pelo seu alto teor de sódio e reduzido valor nutritivo) e nem a penetração instantânea, por esta não oferecer, à enormidade dos parceiros, tempo suficiente para estarem mais receptivos à penetração. E isto é fato se nos referimos a relações entre homem e mulher como entre pessoas do mesmo sexo. Relaxar a musculatura evita dor e aumenta o prazer.

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Além disso, a lubrificação feminina depende de condições hormonais favoráveis mas, principalmente, de estimulação de qualidade, seja por meio de palavras, toques, carícias e fantasias, então há que se dispor de um bom tempo para carícias preliminares. Além do mais, a pele é o órgão mais extenso do corpo humano, rico em terminações nervosas. Se devidamente estimuladas, essas terminações operam verdadeiros milagres em termos de prazer intenso.

Quem parte de imediato para a penetração pode estar se esquecendo da nuca, ombros, tornozelo e de uma infinidade de territórios corporais muito promissores. Palavras bem escolhidas também são afrodisíacos excelentes.

Os filmes não ensinam as pessoas a se estimularem generosamente e a tirarem proveito do delicioso playground em que podemos transformar nossos corpos. Valorizar o contato pele a pele, sem que este seja apenas genital, é o que caracteriza a descoberta, preferencialmente biunívoca, das sensações corporais prazerosas. Esta prática enriquece, amplifica o encantamento de qualquer relação sexual. E isso os filmes não mostram.

Na tela das TVs, testemunhamos um sôfrego desnudar e, a seguir, uma cavalgada permeada de gemidos e caretas estereotipadas. Nada mais. Pela tela aprendemos a nos empobrecer sexualmente. E sequer me refiro à possível distinção do sexo no contexto do amor e do sexo enquanto realização de um desejo físico, pontual, pouco atrelado a duradouros sentimentos de afinidade entre os que o praticam.

Outro ponto a considerar: nos filmes e revistas com imagens explícitas, os peitos femininos e os órgãos sexuais masculinos são enormes e igualmente eretos. No mundo real nem tudo é assim, peitos variam em forma, tamanho e inclinação. O pênis varia de comprimento entre os indivíduos, e sua capacidade de se manter em ereção varia dentro de uma faixa de tempo provavelmente bem menor do que fazem supor os filmes de “sacanagem”. Neles, os sujeitos parecem dotados de poderes sexuais análogos ao da força de super-heróis dos desenhos animados, ou seja, próprios de seres do mundo da fantasia.

O jovem que assiste aos filmes e não tem muita experiência e informação sente-se em desvantagem ao construir sua identidade sexual, pois faz uso de referenciais de um mundo irreal, mas que os filmes lhe fazem crer que deveriam ser esses os padrões desejáveis e naturais, acessíveis a todos.

Não há filmes nos quais os personagens tenham dificuldades no âmbito de expressão sexual e que sejam carinhosamente guiados pelos parceiros a lidar com vergonha, desinformação ou outros aspectos. Personagem algum recusa numa boa qualquer prática por ter preferências diferentes. Nada é negociado, tudo se supõe ser possível e desejável para ambos. Parece que dizer não virou tabu. Pedir algo parece desnecessário, dizer o que gosta também não precisa. Nos filmes, todo mundo parece dotado de mágicos dons de clarividência e sabe de antemão como agradar ao outro.

Preservativos, quem os utiliza explicitamente em filmes? Parece que as estrelas do universo pornô são avaliadas por médicos a cada três meses, para manter as condições de saúde ou corrigir precocemente quaisquer problemas. Ao menos foi o que ouvi num documentário acerca da indústria do sexo nos Estados Unidos e Europa. Nos enredos não se diz da importância de usar proteção nas relações sexuais, mesmo com o advento do vírus da AIDS, do HPV e de outras doenças sexualmente transmissíveis (DST), como certas formas de hepatite, por exemplo.

Fica a impressão de que os personagens se aproximam um do outro completamente desprotegidos, e pessoalmente não diria que lhes falta apenas camisinha. Quais as condições emocionais de quem se dispõe ao contato sexual sem consideração alguma pela necessidade e anseios reais do outro participante, acho que são dois indivíduos guiados exclusivamente pelos ditames dos filmes toscos. Qual moça terá coragem de dizer ao afoito namorado ou “ficante” que a intimidade física entre eles dependerá de haver proteção contra gravidez não planejada e DSTs? Não há na mídia modelos de personagens que recorrem exclusivamente a práticas seguras e se recusam ao contato íntimo desprotegido.

Faixa etária é outro ponto interessante: o mercado do sexo expõe interações entre pessoas cuja aparência não ultrapassa o limite dos trinta anos. Há vida sexual após essa idade? Parece que sim, mas o modelo midiático, distorcido desde sua base, se restringe a performáticos e jovens atores, desprovidos de rugas, cabelos brancos, adiposidades ou dificuldades de locomoção. Óculos de grau é coisa que ninguém precisa retirar antes de se deitar no sofá, cama ou mesa da sala de jantar e partir para a ação.

O sexo virtual, cobrado por minuto em sites, ou gratuito nas salas de bate-papo, é tremenda enganação na maioria dos casos. A “loira fogosa, 18 anos, inexperiente e ansiosa por lhe conhecer” que publicou um anúncio num site qualquer pode ter entre 15 e 36 anos. Por sua vez, o “executivo garanhão e disponível em busca da mulher especial de sua vida” talvez seja pai de quatro filhos, alcoolista, no terceiro casamento, desempregado e sexualmente promíscuo. Pelo teclado, com ou sem a ajuda do cartão de crédito, todos parecem se amar e aparentam possuir inesgotável poder erótico. Tremenda balela.

Uma das maneiras de se começar a conhecer o próprio corpo e os meandros do prazer erótico é a atividade masturbatória, em parceria com a fantasia e com o contato com materiais como filmes, sites, etc..

Até os dias atuais, os homens, mais do que as mulheres, se sentem livres para descobrirem o próprio corpo e se excitarem dessa maneira. Culturalmente prevalece a desigualdade entre os sexos, e a repressão sobre as mulheres sobrevive a despeito das descobertas científicas sobre sexualidade humana ou a liberalização dos costumes em certas sociedades ou subgrupos. Então o homem inicia a vida sexual com algum conhecimento, e quiçá, domínio sobre seu próprio corpo.

No entanto, o homem pouco saberá sobre as necessidades femininas, e suas parceiras quase não conhecem a si mesmas, exceto o que as revistas femininas lhe dizem para fazer: “Seja linda, sexy e sedutora, e use do seu poder de atração como moeda para se realizar na vida”.

O homem não está preparado para agradar sexualmente à sua fêmea, infere que deva usar meia dúzia de truques ruins que aprendeu nos filmes pornôs que assistiu. A moça mal sabe de si mesma, exceto que deve agradar ao homem e se sujeitar ao que ele lhe propõe. O ruim se relaciona com o pior e todos parecem muito satisfeitos. Apenas parecem.

A dificuldade do homem para conhecer a necessidade sexual da mulher com a qual estabelece intimidade física pode também se relacionar a outro fator. Talvez seja equívoco de minha parte, mas ainda hoje em dia, sexo pago parece atrair mais clientes do sexo masculino do que feminino entre os que procuram se satisfazer com um/uma profissional do sexo. Esse é o ponto: desde que cumpra com o pagamento, o cliente tem sempre razão. Isto significa que o homem, na condição de consumidor de um serviço sexual, não precisa se preocupar em ser habilidoso para satisfazer sexualmente ao/à profissional.

Aliás, quem é bom de marketing convence qualquer cliente de que teve um orgasmo e simultâneo ao do cliente, tudo por mérito dele. Tempo é dinheiro nesse ramo de atividade. Agradar com gemidos e fazer o cliente se sentir especial e talentoso na cama é parte do jogo que se estabelece entre as partes (ao qual eu daria o nome de “me engana que eu gosto”). Um homem que aprenda sobre relacionamento com base em filmes e prostitutas pode ter um desempenho pífio com uma parceira amorosa e sequer ter como desconfiar disso.

A namorada aprendeu a fingir prazer para agradar ao seu amor ou imagina que a dificuldade em chegar ao orgasmo seja “falha dela”, e não um real desajuste na aprendizagem e capacidade de comunicação entre as partes. Ele compara seu desempenho ao dos filmes e fica sob a influência das parceiras remuneradas que sopraram obscenas doçuras nos ouvidos dele.

Um último aspecto: nossa cultura tem crescentemente valorizado o exibicionismo e a superficialidade. Quem se arrisca a falar com os “amigos”, descrever-se cruamente, revelar dúvidas, insucessos e se mostrar mal sucedido? Imagine o risco da notícia de um fracasso na cama chegar aos celulares e redes sociais da turma ao qual você pertence? Assim, todos assinam um pacto de silêncio. Quanto que se perde de aprendizagem por não se poder falar a verdade, num ambiente de respeito recíproco?

Termino por aqui, com a certeza de ter deixado de lado uma penca de outros aspectos, tão ou mais relevantes quanto os que escolhi abordar. De qualquer modo, peço que se lembrem do seguinte: filme sobre sexo é puro faz de conta e não serve de parâmetro para alguém se avaliar ou julgar um parceiro.