O alto custo da mudança social

por Regina Wielenska

Muita gente chora a terrível perda de parentes e amigos vitimados pelo incêndio em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Quero me valer deste momento para pensar sobre alguns dos fatores comportamentais que favorecem tragédias desse tipo.

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Simples assim: a maior parte de nosso comportamento é sensível às consequências que produzimos quando agimos de um jeito ou de outro. Um dito popular já postulou que um dos órgãos mais sensíveis do corpo humano é o bolso. Dinheiro nos influencia, e muito. Com ele temos poder, a vida fica mais fácil e glamorosa.

Por qual motivo empresários se dão ao enorme trabalho de criarem e manterem em funcionamento empreendimentos como boates, bares, restaurantes, bufês, casas de show e similares?

A razão é única: eles querem fazer dinheiro e trabalham duro para isso. A meta é o máximo de retorno financeiro no menor tempo possível, recuperar o capital investido e obter lucro na operação antes que a casa que montaram caia na desgraça do público, ávido por novidades. Nenhum problema nisso, ao menos na teoria.

Aí começam as sutilezas e os perigos. Eu quero inaugurar logo, meu capital não pode esperar muito. A arquitetura dos lugares tem que ser cenográfica, tem que parecer bonita, confortável, funcionar o melhor possível … e não custar muito. Desde o projeto, feito a olho por um leigo, ou por um arquiteto que será desobedecido em suas prescrições técnicas, o dono do negócio busca soluções baratas, rápidas e ilusórias. Gambiarras, instalações hidráulicas e elétricas improvisadas, material barato de fácil combustão, muita coisa vai sair errado. Desde que na aparência tudo pareça bacana, parece não haver mal nessas adaptações indevidas.

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Submeter o projeto e a obra às autoridades municipais, tirar alvarás, executar uma obra de acordo com padrões bacanas que sigam normas mundiais de segurança, treinar brigada de incêndio, tudo isso dá trabalho, leva tempo e custa grana. Desse modo, o serviço tenderá a ser executado de modo imperfeito, mal ajambrado, na ilegalidade, bem rapidinho. Até que as autoridades descubram o descalabro, pode ter se passado um bom tempo e a casa estar em tempo de fechar, pronta para virar uma coisa outra qualquer. Muita gente funciona sem alvará, ou obtém licença para uma atividade diversa da realmente praticada. Tempo é dinheiro e nesse jogo tudo vale.

Outra coisa: se eu posso lucrar mais com a casa lotada, bombando de gente que espirra pelo ladrão, para que me limitar à lotação supostamente ideal?

Vejam os ônibus e transportes metropolitanos que diariamente, na hora de pico, entulham em seus interiores dezenas de pessoas que mal conseguem respirar e não podem se dar ao luxo de recusar aquele meio de transporte caro, arriscado e ultrajante para a dignidade de cada um. A política de hiperlotação e maximização dos ganhos é bastante similar nos dois contextos, o de lazer e o de transporte público urbano.

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Temos ainda a considerar que a baixa probabilidade de punições (improváveis multas, ou processo, prisão, lacração, etc.) estimula fortemente práticas empresariais ilegais e ilegítimas. Bebidas falsificadas, gelo manipulado sem condições higiênicas adequadas, funcionário sem registro profissional, barulho excessivo dentro e fora do estabelecimento, seguranças truculentos e mal treinados, falta de brigada de incêndio, esta lista de irregularidades frequentes pode se estender facilmente por mais algumas linhas.

Vamos agora analisar o comportamento do consumidor.

Qual a consequência que provavelmente controla o comportamento de um jovem que “sustenta” os donos de  uma casa noturna quando paga seu ingresso e consumação mínima?

Eles buscam novidade, flertes, emoções prazerosas como a companhia de seus pares, o acesso a bebidas e música, tocadas ao vivo por jovens músicos com os quais se identificam. Diversão é a palavra que resume a complexa experiência que engloba o “esquenta”, a balada em si, e o “after hours”. Jovem costuma ter orçamento curto, buscam eventos que lhe forneçam o máximo de prazer pelo menor custo.

Assim a corda encontra a caçamba. Eu, empresário, monto uma arapuca (e afirmo para mim mesmo que está tudo certo, que nunca aconteceu e nem vai acontecer nada de ruim) para atrair ao meu estabelecimento jovens interessados num evento de ótimo preço e cheio de gente. A rádio anunciou, o centro acadêmico vendeu os ingressos antecipados a preço melhor, a divulgação funcionou de incentivo aos indecisos. Afinal de contas, qual jovem vai ficar de fora de um evento ao qual todo mundo vai estar?

Eu, empresário, faço meu pior com cara de meu melhor, o jovem consome meu produto e todos somos felizes (uma ponta dessa relação de consumo fica com a grana e a outra se diverte), até a hora em que algo dá errado. Assim são algumas tragédias. O improvável ocorre e muita dor é o preço das falhas humanas, seja por atos ou omissões.

Pouco acredito em mudanças profundas no curto prazo, já que elas dependeriam de ações políticas de grande monta, sistemáticas, persistentes e realizadas por um grande contingente de pessoas absolutamente impolutas.

Li nesta semana um comentário interessante de Mauro Ventura (veja aqui), que salienta a tendência que temos de nos acomodar após a forte comoção inicial.

Deixamos as famílias enlutadas, ao relento da dor, e nos ocupamos de  assuntos mais prementes. Reinam, incólumes, a ganância e a busca do prazer, consequências poderosas que nos influenciam nos bons e maus momentos e perpetuam problemas como esse que, agora, atingiu as famílias no Rio Grande do Sul.