O doente imaginário

por Roberto Goldkorn

Do ponto de vista de um monge zen, todas as doenças são imaginárias. Mas para nós que pisamos no chão duro do cotidiano sem incensos e mantras, uma osteoporose ainda é bem concreta. Porém, nem só de sofrimento real vive o paciente nosso de cada dia; sofre-se mais e sem curas, de doenças imaginárias.

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Obviamente como alguns devem tem percebido, pedi emprestado este título da peça do Molliÿre O Doente Imaginário, um homem a frente de seu tempo que sabia das coisas e as levava tão a sério que fazia todos rirem com suas seriedades. No meu teatro diário lido com tantos sofrimentos, tanta dor, que mesmo tendo vontade de rir de meus doentes fico sério e compungido.

Muitos dos meus “doentes” choram e padecem de males que só existem na virtualidade de suas emoções, ou seja, não possuem existência real, no entanto existem. Uma mulher estava em sofrimento profundo porque acreditava que seu marido não a amava, só a desejava sexualmente, e não respeitava seus sentimentos. Ela derramava suas lágrimas enquanto dizia que ele não compreendia a sua dor, afinal, acabava de enterrar seu irmão mais amado, falecido há… sete meses! Como fazer sexo ainda enlutada? Além disso seu marido se mostrava egoísta ao fazer questão de passar num café para uns minutos de relax, depois de um dia exaustivo de trabalho, ao invés de ir para casa.

Outra cliente sofria com as infidelidades reais do marido. Nada estava escondido, mas mesmo assim ela ainda tentava farejar os perfumes da outra nas roupas dele, e se tornou expert em pegar mensagens no telefone dele, que eram como “facadas” em seu peito. Não me perguntem porque ela não se separa, nem ela mesmo saberia responder essa pergunta, muito menos eu.

Doenças imaginárias vêm da infância e da formação cultural

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As doenças imaginárias estão por toda parte fazendo vítimas, e sua base é uma salada de caldo cultural e regressão infantil. O caldo cultural é fácil de entender. Pessoas sofrem imenso por terem sido proibidas de usar o véu islâmico fora do mundo islâmico que escolheram viver. Sofrem porque não possuem o dote para se casar, como manda o costume de seu país, sofrem mais que a mãe do porco-espinho porque sua cultura lhes impõem regras e obrigações que elas não conseguem em algum momento cumprir. Isso é normal, bizarro, mas normal, existe desde que o mundo é humano.

Já as regressões são, como o nome indica, uma volta a um modo operacional infantil ou juvenil. Por exemplo: Quando uma criança pequena acorda gritando que tem um tigre no quarto dela, “tem mesmo um tigre lá.” Ainda não houve uma separação mais nítida dos seus hemisférios cerebrais, a educação, e a cultura não tiveram tempo de programar seus hemisfério esquerdo com as concepções da realidade, ou seja, aquilo que costumamos chamar de realidade.

As fronteiras entre seu universo onírico e o vígil, ainda estão perigosamente abertas. Assim quando regredimos a esse modo infantiloide acreditamos que tigres, ou homens peludos invadiram a nossa vida ou pior ainda nos abandonaram para sempre. O sofrimento virtual é terrível, porque não podemos tomar um remédio para remediá-lo, não podemos extraí-lo cirurgicamente, nem colocar o patch para silenciá-lo.

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O doente imaginário sofre a indizível dor do membro fantasma, ou pior que a dor, a diabólica vontade de coçar algo que já não existe mais. Pessoas em sofrimento imaginário em geral estão em processo regressivo, mesmo que essa doença lhes dê uma lufada de prazer. Atendi a uma senhora que está em conflito com a família devido à sua mania de arrumar tudo e sofrer quando algo fica fora do lugar. A última briga “homérica” foi porque alguém quebrou seu aspirador de pó preferido.

Perguntei-lhe porque tanto perengue, porque não mandava consertá-lo e pronto. Ela não me ouviu e continuava repetir que tinham de ter cuidado com as coisas, que era preciso preservar as coisas, etc. Tive a inspiração de perguntar-lhe quanto anos tinha o fabuloso aspirador. Ele parou por um momento, deu um sorriso de criança pega no ato da traquinagem, e disse, “não importa ele estava NOVO!”. “Quantos anos tem o aspirador?” Insisti como um pequeno príncipe de 59 anos. Quase sussurrando ela confessou de cabeça baixa: “Quinze anos”.

“Dezesseis” corrigiu a filha acusada do crime bárbaro. Batalhas em torno de cães de palha, mas que rendem sofrimento e doenças reais.

Sofremos porque ele ou ela, não liga, sofremos porque ele ou ela liga. Sofremos por antecipação e por retardo. Há pessoas que não enterram seus mortos anos depois de mortos de verdade ou virtualmente. Num mundo ideal as doenças imaginárias seriam banidas, ou estariam apenas nos grotões mais profundos do planeta. Mas não vivemos no mundo ideal.

Pedi a minha cliente primeira a ser citada que pensasse em sua mãe com setenta anos. Que se imaginasse com aquela idade, sem tempo para se arrepender do tempo perdido com doenças imaginárias. Depois pedi-lhe que abrisse os olhos e se visse com seus trinta e poucos anos, cheia de vitalidade, em plena forma, com tudo à sua volta para ser feliz. Por fim desci o machado: “Seja feliz agora, ao sair daqui deixe essas latas vazias no primeiro lixo. Volta para casa e chame o seu marido para uma sessão de sexo selvagem. Depois se quiser fume um cigarro, mas lembre de sorrir.”