Reencontre a alegria de viver

por Patricia Gebrim

 
Patricia Gebrim: Portillo/Chile

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Eu tive a alegria de passar a minha última semana em um lugarzinho escondido no topo da Cordilheira dos Andes. Para onde quer que olhasse, eu só via aquele branco, tão branco que chegava a ofuscar a minha visão. A neve cobria as montanhas, deixando de fora apenas algumas pedras aqui e ali, como que para lembrar os visitantes de que aquela paisagem não era a realidade final.

O que quero lhes contar aconteceu em um de meus passeios em meio às gélidas montanhas, em uma manhã surpreendentemente ensolarada. Eu estava caminhando com aqueles divertidos sapatões para neve, que mais parecem raquetes de tênis, quando senti um arrepio. Não era um arrepio de frio, apesar de estar tudo gelado ao meu redor… era algo diferente!

Estremeci, e num chacoalhão, saiu de dentro de mim uma mulher, ela era enorme, acreditem! Nem sei bem por onde saiu, se foi pela minha barriga, ou se simplesmente se materializou à minha frente. Era parecida comigo, no entanto seu corpo era mais forte, a pele mais dura e curtida, o olhar tão gélido quanto as águas congeladas do lago sobre o qual eu me encontrava.

Aquela mulher era de dar medo em qualquer um!

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_ Quem é você? _ pensei, um pouco assustada com o inusitado da situação.

E como se ela tivesse respondido, ouvi em minha mente a resposta:

_ Eu sou a abominável mulher das neves!

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Nossa sombra

Ah, você que está lendo isso aí do outro lado da tela, não duvide! Todos temos esses abomináveis seres dentro de nós. Muitas vezes ficam lá, bem quietos, de forma a nunca suspeitarmos da sua existência. No entanto, basta um olhar mais atento e seremos capazes de encontrar o terrível monstro que congela nossos sentimentos, endurece nossa pele e rouba nossos corações.

Alguma vez você já se sentiu meio morto por dentro? Amortecido? Como se já não fosse capaz de sentir nada? Como se nada na vida pudesse tocar você? Nem a música mais linda? … Nem um filhotinho de cachorro? … Nem uma obra de arte? … Nem as pessoas que você acreditava amar?

Então sabe do que estou falando!

Eu não acredito que esses abomináveis monstros da neve nasçam conosco… Não. Eles vão se formando aos poucos, na medida em que vamos lhes fornecendo o gelo de que é feito seu corpo. Cada vez que nos sentimos vítimas da vida, cada vez que deixamos de acreditar em nós mesmos, cada vez que deixamos de acreditar nas pessoas… a cada decepção… a cada frustração… vamos pouco a pouco dando forma ao monstro sem nem mesmo nos dar conta de que somos seus criadores.

Uma pessoa mente para nós e já não acreditamos que a verdade exista …

Uma pessoa nos fere, e mergulhamos em nosso gélido poço de lamentação pessoal, congelando uma parte de nosso coração…

Uma pessoa vai embora e passamos a ter a fria certeza de que seremos sempre abandonados.

Assim, pouco a pouco, vamos nos tornando céticos, frios, distantes. Vamos tolhendo os movimentos espontâneos da criança cheia de vida que pulsa em nosso íntimo. Mandamos que ela se aquiete, muitas vezes ficamos raivosos com ela e a aprisionamos em um cantinho qualquer lá dentro de nós.

Aos poucos as cores vão indo embora … nada de azuis, amarelos ou laranjas … que pena …

_Vermelho?

_ Nem pensar!

Bomba-relógio

Nada de canções, músicas, brincadeiras. Nada de sorrisos. Nada de fogueiras quentinhas. Vamos nos tornando amargos, desconfiados … e assim, pouco a pouco, vamos moldando nossos abomináveis monstros das neves, como fazemos com uma bola de argila subitamente transformada em bomba-relógio:

TIC … TAC … TIC … TAC … TIC … TAC …

Muitas vezes quem nos olha de fora nada percebe, a não ser um certo distanciamento. Não fazem idéia do que está se passando dentro de nós. Outras vezes nem mesmo nós percebemos o que fazemos, tal a inconsciência na qual vivemos. Aos poucos nos afastamos das pessoas, nos isolamos, nos escondemos.

Congelamos por dentro.

E sabe o que acontece quando congelamos por dentro? Paramos de sentir dor. Pode parecer bom, eu sei… mas não sentimos mais nada também. E se nada sentimos, facilmente ferimos a nós mesmos, ou aos outros. Não que sejamos “maus”… é apenas uma incapacidade de perceber as consequências de nossas ações.

Podemos também chamar isso de insensibilidade.

Conforme fui percebendo tudo isso, senti uma tristeza ao estar frente a essa mulher tão abominável. E pior: saber que ela era parte de mim!

O que eu poderia fazer? Como eu poderia me livrar daquele horrendo monstro que andava me roubando a alegria e a própria vida? Com fazer desaparecer essa mulher gelada que fere as pessoas que mais amo? Ela parecia ser tão grande… tão forte… O que eu poderia fazer?

Por sorte o dia estava ensolarado. Um raio de sol incidiu sobre o braço da abominável mulher das neves, sobre aquela parte horrenda de mim. Foi quando eu vi a gotinha escorrendo … aquela mísera gotinha … uma gotinha de nada, refletindo a luz do sol, me mostrou o caminho!

De repente não senti mais medo algum daquela mulher feita de neve e gelo. Percebi que nada mais era do que uma ilusão! Fui me aproximando, e ao fazer isso percebi medo nos olhos dela. Cheguei mais perto e a abracei. Ela era parte de mim, afinal. E nesse abraço coloquei todo o meu calor, abracei o mais verdadeiramente que pude. No começo foi difícil. Minhas mãos começaram a doer pelo contato com o gelo de seu corpo. Meu peito ficou gelado de encontro ao dela. Mas eu resisti, confiante, e em pouco tempo, ela começou a derreter …

Foi incrível … Aquela mulher enorme e assustadora foi se derretendo nos meus braços. Meu peito pulsava como uma fogueira. Quanto mais eu me permitia sentir compaixão por ela, mais brotavam de mim enormes labaredas … e aquela neve toda foi se derretendo, e a mulher foi ficando fininha … fininha … e por fim virou uma linda poça de água azulada a meus pés.

Já que era parte minha, a bebi de novo… Eu estava sedenta de mim.

Só que desta vez, ao invés de me congelar, ela me deu forças para seguir em frente.

Desci a montanha cantando, de braços dados com a menina, que finalmente se sentia livre para ser quem era.

_ Vamos fazer um boneco de neve? _ disse a menina.

_ Claro! Por que não? _ respondi.

E passamos o resto da manhã brincando, eu e a menina, na neve, no topo de uma montanha da Cordilheira dos Andes …