O preço de ser fiel a si mesmo

por Roberto Goldkorn

Fiz uma pesquisa informal sobre a lista dos temas que mais tiram o sono das pessoas. O aquecimento global, a gripe aviária (que já chegou na Europa), a guerra do Iraque, e a crise (que crise?) política no nosso quintal nunca aparecem no topo da lista. Os problemas financeiros vez ou outra aparecem, mas só para as pessoas que têm problemas financeiros. Atraí a sua curiosidade? Pois bem, os temas que aparecem no topo da lista são todos ligados aos relacionamentos humanos ou a ausência deles.

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A solidão, a falta de amigos e amigas, os desencontros amorosos, a sensação de isolamento social e afetivo, a invisibilidade (também social e afetiva) são os campeões de audiência. É claro que há uma multidão de reis e rainhas da festa, cheios de amigos, e com a difícil tarefa de escolher entre tantos, aquele ou aquela que vai partilhar seu afeto e outras cositas más.

Mas talvez até pela minha profissão, o universo em que pesquisei fosse um pouco mais 'especializado'. Mas porque a arte dos relacionamentos é tão abstrata para tantos? Por que mesmo morando em grandes cidades superpovoadas, pessoas bonitas e interessantes ainda se sentem sós, isoladas e desamadas? A primeira coisa que aprendi com o tempo, é que não se pode tentar responder a essas questões no atacado, ou seja, apenas sociologicamente.

Não se trata de analisar esse 'mercado' e sim uma por uma para ver suas particularidades, suas 'pessoalidades' e daí sim tentar ter uma visão macro do problema. O que vamos encontrar nessa 'pesquisa'? Primeiro: gente que em nome de uma suposta autenticidade fala o que quer, exercita o seu direito de ser 'absolutamente sincero' e de expor suas neuroses e psicoses 'sem medo de ser feliz', e assim repudiar a falsidade que significa viver em sociedade. Essa é uma característica adolescente.

É muito comum essa rebeldia, essa recusa em ser assimilado pela sociedade adulta e suas regrinhas tolas. No fim o adolescente acaba contorcendo-se para ser assimilado pela sociedade adolescente com suas regrinhas tolas. Alguns adultos (por motivos que não nos cabe aqui discutir) acabam mantendo 'heroicamente' essa autenticidade. Dependendo do tipo de autenticidade os rótulos vão de grosseiro, intempestivo, neurótico e intolerante até o popular maluco. Essas pessoas reclamam muito da solidão, da falta de amigos e da discriminação. Mas isso quando estão em ambiente seguro e estão em crise. Fora dessa cena são os ferozes acusadores e coladores de rótulos de 'podre' e 'decadente' em cada produto da sociedade em que vivem.

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Jung

No outro extremo estão os seres 'coletivos'. O psiquiatra suíço C. G. Jung (1875-1961), fala desses seres o seguinte: “A identificação com o cargo ou título pode ser muito tentadora, mas é o motivo pelo qual muitas pessoas não vão além da dignidade a elas concedidas pela sociedade. Procuraríamos em vão uma personalidade sob a casca. Sob o envoltório pomposo encontraríamos um homenzinho deplorável. O cargo ou qualquer tipo de casca exterior exerce um grande fascínio, porque representa uma fácil compesnação às deficiências pessoais.”[1] Complementando o que diz o grande mestre: “…Assim como alguns desaparecem em seu papel social, outros podem ser dragados por uma visão interna afastando-se definitivamente de seus semelhantes.”

A fantasia da autenticidade, de ser 'fiel a uma visão interna', de poder existir como uma individualidade pura, independente, no meio social é uma quimera adolescente. Tenho alguns clientes nessa categoria. Quando tento convencê-los a adicionar em sua conduta comportamentos socialmente desejáveis do tipo que facilitaria o seu tráfego no grupo, eles rejeitam com certa cara de nojo, alegando que isso seria falso. Dizem 'mas como eu vou dizer ou fazer isso se não é o que sinto, não é o que estou pensando?'

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É muito difícil convencer essas pessoas que a vida em sociedade implica em certo grau de despersonalização. Como dizia um texto que grudei no meu fichário dos tempos de escola secundária: "A vida é um palco. Mas vejam só o papel que me deram!" Dizer o que pensa, fazer o que dá na telha, agir como se estivesse sozinho no mundo e ninguém mais importasse, é o sonho de muitos autênticos. Mas em geral gera um isolamento, que vai gerar rancores, mágoas e no fim quase sempre deságua na chamada 'solidão ressentida'. O interessante é que esses autênticos não fazem uma associação direta entre a sua obstinada cruzada e a sua solidão ou os seus percalços no palco social.

Os 'integrados' aqueles a quem Jung fundiu com seus papéis sociais, são o extremo oposto. Sua necessidade de serem aceitos pelo grupo é tamanha que passam a ser 'mais realistas que o rei'. Colocam a máscara social na face de tal maneira que não mais conseguem retirá-la para dormir. Lembram muito a piada sobre aquele ex-presidente que logo depois de empossado, sentindo-se um semideus, foi deitar-se com a faixa presidencial. A mulher espantada com tal gesto exclamou: “Meu Deus!” Ao que ele responde: “Tudo bem, enquanto estamos sozinhos aqui pode me chamar só de Fernando”.

A solidão desse segundo grupo, bem mais numeroso, acontece porque as ligações que estabelecem são com a sua máscara, o seu papel. Ou seja, suas relações quando existem, acontecem numa superfície, que embora não seja de todo falsa, porém está longe de representar o sujeito na sua essência. O Tim Maia, numa entrevista, contou que uma vez foi transar com uma fã. No auge do sexo ela gritava: “Estou transando com o 1º lugar na Billboard” (parada de sucessos americana). Essas pessoas muitas vezes se sentem como se fossem apenas médiuns, veículos para a manifestação de entidades culturais/sociais pré-existentes.

Esse vazio que aos poucos vai crescendo leva a graves desequilíbrios, e não raramente às drogas, à bebida e a outros compensadores nefastos. Assim como temos técnicas que nos ensinam a respirar, a caminhar e até a fazer sexo (apenas para citar três funções essenciais, sem as quais não chegaríamos onde estamos), precisamos aprender a viver em sociedade, e a encontrar um caminho mais harmonioso para trafegarmos nessas teias sociais.

Muito da solidão, do desamparo em que multidões de seres como eu e você se encontram, se deve a um analfabetismo existencial, que o dinheiro, o poder e a religião não podem suprir totalmente. Cada vez mais podemos dizer que viver bem não é coisa para amadores, por mais romântica que essa idéia possa parecer. Viver não é brincadeira não, e os sintomas dessa afirmação estão a nossa volta, observe e conclua.

[1] Do livro 'O Eu e o Inconsciente'. C.G. Jung, Ed. Vozes, Petrópolis, 1982. pp20.