Por que refletir sobre sua história de vida pode te fazer tão bem!

por Monica Aiub

Algumas pessoas me perguntam por que o simples fato de contar a historicidade durante as consultas em filosofia clínica já provoca tanto movimento. Conforme descrito em artigos anteriores (clique aqui), quando o partilhante (paciente) chega ao consultório, a primeira conversa é sobre o Assunto, ou seja, qual a sua questão, o que lhe incomoda, o que faz com que ele procure o consultório. Após situar, contextualizar a questão, e após, é claro, as devidas apresentações acerca do funcionamento da filosofia clínica, é pedido que a pessoa conte sua historicidade, com o objetivo de situar a questão trazida no contexto maior da existência do partilhante, assim como para coletar dados sobre o universo no qual a pessoa se encontra, sobre suas formas de ser e de lidar com as questões cotidianas.

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Muitas pessoas, apenas contando sua historicidade, compreendem o que se passa e encontram formas para lidar com a questão apresentada. A pergunta colocada: O que acontece? Por que acontece assim?

Em primeiro lugar é importante destacar que historicidade é diferente de história. A história é a narração dos fatos, enquanto a historicidade é o modo de ser de uma realidade histórica. Em outras palavras, quando a pessoa relata sua historicidade, não relata apenas os fatos, mas seu modo de ser diante de sua história, dos fatos vividos. O relato acerca dos modos de ser, muitas vezes, provoca reflexões acerca dos processos vividos, das formas escolhidas para significá-los, para lidar com eles.

Segundo Dilthey, a história abarca a totalidade do pensamento. Sendo, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento, aquele que relata sua historicidade pode compreender seus processos, identificando as relações, interações, influências e formas de articulação do vivido. Quando observamos nossa historicidade a partir do momento presente, é possível ler o vivido de modo diferente, atribuindo-lhe novos significados. Trata-se de atualizar nosso olhar.

Já ocorreu com você de, ao revisitar sua história de vida, compreender algum fato de modo diferente do que havia compreendido na época? Em geral, atribuímos às diferentes interpretações o fato de termos mais maturidade, ou distanciamento, ou finalmente conseguirmos estabelecer conexões com outros aspectos que nos escapavam anteriormente.

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Essas diferentes interpretações “modificam” o nosso passado. Não que se modifiquem os fatos, mudam as interpretações. As mudanças de interpretação podem trazer novas formas de compreensão daquilo que se é hoje, podem trazer aprendizagens sobre nossa própria vida e, com isso, modificações em nosso futuro, pois a partir de tais aprendizagens, passamos a nos posicionar de formas diferentes, transformando os fluxos de nossos próprios movimentos e, consequentemente, do movimento do mundo que nos rodeia.

Parece difícil, improvável e às vezes até “mágico” que isso ocorra. Onde estaria a “mágica”? Como seria possível?

Não há mágica. Simplesmente, quando observamos nossa historicidade, entramos em contato com o vivido, podemos observar como recebemos os fatos, como incorporamos alguns de seus aspectos e não outros e, principalmente, como nos constituímos a partir das vivências de tais fatos. Podemos observar também, como nos posicionamos diante do real, e os resultados de nossos posicionamentos. Se, além de observarmos os fatos, observarmos a totalidade de tais processos, poderemos aprender muito sobre as formas como nos constituímos. Podemos, também, observar outras possíveis interpretações e formas de constituição. Talvez enxerguemos nossa história de outra maneira.

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Certa vez um partilhante afirmava que nunca foi amado por seus pais. Ele era capaz de apresentar vários fatos que comprovavam sua afirmação. Contudo, ao contar sua historicidade, o olhar sobre seus pais se modificou. Ele compreendeu que seus pais não expressavam seu amor através de colo, carinhos e abraços porque esses não eram elementos da cultura familiar. Contudo, compreendeu também que seus pais o amavam demais, e que a forma de expressar seu amor era cuidando para que ele tivesse as condições necessárias para um pleno desenvolvimento, ainda que o custo dessas condições fosse muito acima das possibilidades de seus familiares. Assim, o fato do pai trabalhar em dois empregos, o que diminuía muito o tempo disponível para o relacionamento com o filho, tinha como justificativa a necessidade de custear os estudos do filho, de oferecer as condições adequadas para que ele se desenvolvesse. Sua conclusão ao olhar para sua historicidade foi: “Eu via meus pais com os olhos da criança que deseja colo. Agora que sou pai, vejo com os olhos do adulto que compreende que amor é muito mais que colo, é oferecer condições para que a criança se desenvolva plenamente”.

A pretensa “falta de amor”, que trazia muito sofrimento e fazia com que sua vida tomasse determinados rumos, uma vez compreendida como um equívoco de leitura aplacou o sofrimento e trouxe novas possibilidades de vida para o momento presente.

Contar a historicidade também pode permitir à pessoa reconstituir os contextos vividos. Observar dados das circunstâncias, do tempo, do lugar, das relações que vivia e que interferiram na constituição dos fatos e de suas formas de ser pode revelar outras possibilidades de compreensão do vivido.

Muitas vezes fixamos o foco de nosso olhar em um único ponto, e negligenciamos muitos outros aspectos. Posso me “condenar” por uma determinada postura, simplesmente porque esqueci de avaliar as circunstâncias e observar que, naquele contexto, essa era a única postura possível.

Também posso não aceitar algumas de minhas escolhas porque as observo de maneira não situada no tempo: “Como pude escolher isto para minha vida?”, “Como eu não pensei nisto ou naquilo?”. Há contextos em que tais questionamentos fazem muito sentido, mas em outros, caberia perguntar: “Naquela época, eu tinha condições de enxergar o que enxergo hoje?”; “Naquele tempo, eu pensava como penso hoje?”; “Eu tinha maturidade para perceber isso?”, e muitas outras questões do mesmo gênero.

Outra pergunta que surge, na sequência, é: “Mas qual a diferença de contar minha historicidade em clínica e pensar nela? Eu já pensei tantas vezes e nada aconteceu, agora que contei para você, parece que é diferente…”. Talvez isso ocorra porque precisamos organizar a narrativa para que o outro compreenda, e assim organizamos para nós. Talvez isso ocorra porque precisamos explicitar alguns detalhes para que o outro entenda, e tais detalhes, anteriormente, nos passaram despercebidos. Talvez, ainda, porque a presença do outro permita a partilha, e um posicionamento diferente do habitual. Enfim, são muitas hipóteses, mas muito provavelmente, para cada pessoa, em cada relação, isso se dá de maneiras diferentes. Por isso para alguns basta contar a historicidade, para outros, o trabalho clínico exige que se vá muito além disso, com vários outros procedimentos.

Você já experimentou revisitar sua historicidade? Isso trouxe movimentação em sua vida? O que aconteceu? Por que aconteceu? Você conhece os processos pelos quais se constitui, se torna aquilo que é?