Por que é importante fazer filosofia da neurociência

por Monica Aiub

Dando continuidade ao assunto “diagnósticos”, iniciado no artigo anterior (clique aqui e leia), trago a contribuição de Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli, no livro “Corpo em evidência”.

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Os autores buscam “compreender o papel das tecnologias de visualização médica na construção social e cultural das doenças” (2010: 18), tratando do modo como tais técnicas criam o “mito da transparência”, como se pudéssemos ver nosso corpo por dentro, e a partir de tal visão, tivéssemos acesso irrestrito a uma fotografia de nosso interior, ou mesmo de nós próprios, daquilo que somos.

Certamente você já viu um raio X. Ele se parece com uma foto de seu interior? Você já viu uma ressonância magnética de seu cérebro? Ela se parece com uma foto dele? Ou melhor, se parece com uma foto sua?

A neuroimagem nos dá, segundo os autores, a sensação de que o cérebro visto é a própria pessoa (2010:53), mas não é assim que funciona. Quando nos deparamos com uma imagem cerebral, ela não corresponde a uma fotografia do cérebro, ela é uma reconstituição de padrões estatísticos, matemáticos. Por exemplo: ao observarmos uma neuroimagem, temos, geralmente, a cor preta como um “pano de fundo” no qual são contrastadas as áreas estudadas, que apresentam atividade. Segundo os autores, “Um dos efeitos gerados por esse mecanismo é a impressão de que nenhuma outra área, exceto as coloridas, está ativa – o que não é verídico” pois “no cérebro vivo, todas as áreas estão constantemente ativas, exceto as lesionadas” (54).

Na verdade, uma tomografia, por exemplo, é construída por voxels – que correspondem a sua unidade básica, tal como um pixel na imagem da tela de seu computador, “a menor parte distinguível em uma imagem tridimensional” (idem: 54). A construção da tomografia se dá a partir do cálculo comparativo entre dois conjuntos cerebrais, ou seja, não é a observação de um caso individual, mas a comparação com padrões de alterações identificadas em diversos casos.

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Uma tomografia computadorizada é a combinação de vários “cortes” no corpo, observando os tecidos em vários ângulos ou níveis, permitindo o contraste entre tecidos moles e ossos. Sua grande utilidade consiste em diagnosticar tumores ou coágulos. Já uma ressonância magnética permite um contraste ainda maior entre os tipos de tecidos, através de um campo magnético que provoca o realinhamento dos átomos de hidrogênio do corpo. “O núcleo dos átomos produz um campo magnético que é ‘lido’ pelo aparelho e transformado em uma imagem computadorizada tridimensional.” (MORAES, 2009: 13).

Em outras palavras, não temos uma foto, temos uma imagem que é resultado de um cálculo sobre um cérebro escaneado repetidas vezes, e lido a partir de comparações com outras imagens, de outros cérebros, também escaneados. Por isso, a neuroimagem é uma reconstituição a partir de padrões estatísticos e matemáticos.

Contudo, a forma como a neuroimagem é tratada pela mídia, faz com que pareça ser uma fotografia, não apenas de nosso cérebro, mas de nossos pensamentos, sentimentos, desejos, crenças, possibilitando ler, a partir dela, nossas mentes. Mais que isso, em algumas áreas, há a aposta de, a partir dos dados observados em tais imagens, ocupar um espaço em nossos cérebros, tal como se propõe o neuromarketing.

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Neurociência e neuromitos

E a neuróbica – a aeróbica neuronal? Não basta exercitar os músculos, é preciso exercitar os neurônios. Ou o “doping cerebral”, ou seja, a possibilidade de modelar a sociedade, o comportamento, a educação, a vida, a partir de fármacos. São os chamados “neuromitos”, por Ortega e Zorzanelli: “Os neuromitos são construídos, por exemplo, quando uma citação de um estudo científico cuidadoso extrai um significado que ultrapassa aquilo que se poderia inferir a partir dele, realizando transposições simplificadoras ou ampliando a capacidade de inferência do achado científico. São práticas desse tipo que fazem com que as ideias neurocientíficas sejam frequentemente incorporadas ao entendimento popular por meio de simplificações grosseiras.”(2010: 107).

Thomas Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas, nos alerta para o fato da ciência partir de modelos, paradigmas, que estabelecem certas “wp_posts” para resolver os problemas, tais como nos “quebra-cabeças”: “Para ser classificado como quebra-cabeça, não basta a um problema possuir uma solução assegurada. Deve obedecer a regras que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las.” (2009: 61).

A “chave” da neurociência talvez incorra, como apontam Bennett e Hacker, em Fundamentos filosóficos da neurociência, na falácia mereológica, ou seja, tomar o todo por uma de suas partes, considerando o cérebro como se fosse a totalidade do corpo. O que isto significa? Segundo os autores, os neurocientistas, apesar de criticarem o dualismo mente/corpo cartesiano, criam uma espécie de criptocartesianismo, um dualismo cérebro/corpo.

Não estaríamos, como questionam Bennett e Hacker, incorrendo na falácia mereológica, confundindo a parte com o todo, ou seja, o cérebro com o corpo?

Não estaríamos, ainda, presos, a um conceito de causalidade linear, buscando nos movimentos sinápticos as causas para nossas questões?

Com isto, estaríamos tentando modelar nossos cérebros para nos enquadrarmos em determinadas formas de vida, ao invés de construirmos formas de vida compatíveis com nossas necessidades?

Tais questionamentos não revelam negação ou repúdio ao trabalho da neurociência. Ao contrário, é preciso reconhecer a importância de tais pesquisas, o quanto elas contribuem para a conquista de uma vida melhor, mais saudável, com mais longevidade. Contudo, é importante que se faça uma filosofia da neurociência, ou seja, uma reflexão que tenha como função avaliar a pertinência de seus métodos, assim como das regras que “limitam as soluções aceitáveis” e definem “os passos necessários para obtê-las”, conforme a prática da “ciência normal” descrita por Kuhn.

Também é preciso avaliar o alcance das conclusões em neurociência, mantendo os limites do que a pesquisa séria nos revela. É fundamental a distinção entre o que é resultado de pesquisa séria, e o que é conclusão apressada, divulgação panfletária ou comercialização de “soluções mágicas” para nossos problemas, fundamentadas em psedopesquisas, ou em interpretações distorcidas de pesquisas sérias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENNETT, M.; HACKER, P. Fundamentos filosóficos da neurociência. Lisboa, Instituto Piaget, 2005.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
MORAES, A. P. Q. O livro do cérebro, 1: Funções e anatomia. São Paulo: Duetto, 2009.
ORTEGA, F.; ZORZANELLI, R. Corpo em evidência: A ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.