Eu sou normal? Para filosofia essa pergunta não tem sentido

por Monica Aiub

Quando nosso modo de ser se diferencia do comum, muitas vezes somos chamados de anormais, loucos. Dependendo do contexto em que isso ocorra, poderá provocar dúvidas em nós: sou normal? Estou enlouquecendo? É normal pensar assim? É normal viver assim?

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Você já se fez alguma dessas perguntas na vida? Antes de qualquer resposta é preciso avaliar: o que significa ser "normal"?

No Dicionário de Filosofia (2003), Abbagnano define normal como "aquilo que está em conformidade com a norma"; "aquilo que está em conformidade com um hábito ou com um costume ou com uma média aproximada ou matemática ou com o equilíbrio físico ou psíquico".

Desta definição poderíamos concluir que o normal é uma média do comum, ou de uma maioria. Assim sendo, se não reproduzirmos os hábitos ou costumes de nossa sociedade, seremos anormais? Quantas vezes hábitos, costumes, regras, leis de uma sociedade foram modificados? Historicamente há muitos exemplos: o papel da mulher na sociedade, a escravidão, os valores morais, as relações de trabalho, as formas de organização das sociedades… Numa mesma cultura são verificadas modificações no tempo, e num mesmo tempo é possível perceber claramente diferenças culturais regionais.

Se você já viajou para outro país, ou mesmo para regiões diferentes de nosso país, deve ter observado hábitos, costumes diferentes. As pessoas daquela região, por possuírem hábitos diferentes dos seus, são anormais? Você é anormal? Qual a norma à qual deveremos estar em conformidade?

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Diferentes grupos criam diferentes regras, constituem seus hábitos. Discordar dos hábitos de seu grupo e desejar construir uma forma diferente de organizar sua vida permite considerar que você é anormal? Questionar os costumes de sua sociedade significa ser anormal? Concluir isso implicaria em reproduzir costumes, em estagnação, imobilidade, ausência de construção. As normas seriam consideradas e reconhecidas como absolutas e invariáveis.

Se somos responsáveis pelo mundo que construímos, assim como pelas formas de existência que criamos, necessitamos avaliar constantemente nossa própria construção. Por isso, nossas atividades, nossos valores, nossas leis, nossas normas modificam-se de tempos em tempos, a fim de acompanhar as mudanças originadas nesta construção. Da mesma forma, o que consideramos normal também varia.

Mas no cotidiano, normal é considerado aquele que se submete à pressão das normas, que age como se espera; "anormal" é quem foge às regras, quem busca saídas criativas. E quando um comportamento, tido como normal, não é aceitável para a pessoa? E quando construímos socialmente uma norma de comportamento que traz malefícios? E quando seguir a regra implica em abandonar os sonhos que dão sentido à existência? O que fazer?

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Busquemos um equilíbrio. Se considerarmos normal aquilo que está em conformidade com o equilíbrio, precisaremos, inicialmente, esclarecer o conceito de equilíbrio. Se equilíbrio for uma medida absoluta, nos encontraremos novamente diante da impossibilidade de estabelecer um padrão de normalidade; se for um equilíbrio subjetivo, então como traçar uma medida? Como avaliar se algo é normal ou não?

As ideias e comportamentos de uma pessoa podem estar fora da medida convencionada socialmente e essa ser a sua medida, trazendo-lhe equilíbrio. Ideias e comportamentos podem estar fora da medida convencionada e isso ser impedimento para a vida. Em filosofia clínica, a diferença entre normal e anormal está na forma como essas ideias ou comportamentos afetam a vida do *partilhante e seu contexto. O objetivo é auxiliar a pessoa a encontrar a própria medida de equilíbrio. Uma medida que não é absoluta, mas acompanha o movimento da existência.

Quantas vezes nossa "loucura" é nossa forma de sobrevivência? É a maneira que encontramos para manter nosso "equilíbrio"?

Em vários momentos não nos enquadramos em padrões de normalidade e sofremos discriminação por isso. O que faz o filósofo clínico diante de uma situação como esta? Busca formas para adaptar o partilhante? Ou procura maneiras de auxiliá-lo a encontrar meios para modificar seu contexto? Orienta-o a procurar um outro contexto para viver? Ou o apóia a afrontar o padrão, auxiliando-o a encontrar maneiras de conviver com as consequências de sua escolha?

O "anormal" de uma sociedade pode ser apenas alguém distanciado de sua cultura de origem, ou uma voz dissidente do poder instituído. O que em outras épocas era considerado loucura, hoje pode ser padrão de normalidade. O que era considerado um absurdo nos padrões da "norma", poderia ser uma grande descoberta, algo capaz de revolucionar a sociedade.

Por isso, se o partilhante estiver subjetivamente bem com sua "loucura" – entendendo aqui loucura como atitude em desacordo com a norma – se isso não colocar em risco sua vida, nem a de outros, que motivos há para interferir? Porém, se tal "loucura" for motivo de sofrimento, incômodo, e ele desejar modificar isso, então o filósofo clínico poderá auxiliá-lo na construção da mudança. A modificação ocorrerá na medida da escolha do partilhante, considerando-se as condições existentes no contexto onde ele está inserido e as possíveis conseqüências de tal mudança.

Contudo, um cuidado importantíssimo é avaliar a situação trazida pelo partilhante. Se o partilhante fugir ao padrão sem justificativas, sem saber o que o leva a isso, sentindo-se "obrigado" a agir, sem escolhas, é preciso pesquisar a existência de possíveis distúrbios químico-orgânicos. Tendo estudado, em sua formação, os sintomas de distúrbios que necessitam de tratamento médico, o filósofo clínico, ao identificar indícios, deve encaminhar o partilhante a um médico para diagnóstico e possível tratamento.

Trabalhar a singularidade, mas preservar a integridade e conhecer os limites de atuação é essencial ao filósofo clínico. Não consideramos patologias, mas há situações em que medicamentos são necessários e não é habilitação do filósofo clínico avaliar.

Quando afirmamos que em filosofia clínica não há padrões, tipologias, normalidade, patologias, nos referimos à não aceitação da norma como um modo de ser absoluto. O filósofo clínico não é detentor da "verdade", não é um "sábio" que orienta o partilhante sobre as melhores maneiras de agir, de ser ou de viver. É apenas um bom ouvinte, que não julga o partilhante.

Seu papel é provocar a reflexão sobre esse modo de ser e suas implicações, sobre as escolhas e construções da pessoa. Com as questões contextualizadas a partir da observação do entorno do partilhante e das possibilidades existentes nele, a tarefa do filósofo clínico é auxiliar na escolha de caminhos para realizar suas buscas. Em alguns casos, é preciso pesquisar possibilidades de mudanças no contexto e efetivá-las, ou pensar sobre possíveis reações de pessoas ou grupos significativos ao partilhante, ou ainda investigar formas de convivência com situações pré-estabelecidas, entre outros possíveis encaminhamentos para a clínica.

Diante deste processo, a pergunta "eu sou normal?" perde o sentido, esvazia-se, pois, afinal, o que é normalidade? Muitas vezes o partilhante descobre que seu modo de ser é diferente da norma estabelecida, e por não concordar com ela, é rotulado como "anormal". Descobre também que o rótulo é atribuído de acordo com a norma estabelecida e, algumas vezes, o caso não é se tornar normal, mas manter-se fora da norma, romper com ela, quebrá-la, modificá-la, transmutá-la, a fim de viver o que se é.

Conviver com o que se é e com as expectativas alheias, ser, tornar-se ou manter-se são algumas possibilidades da filosofia clínica. Neste trabalho terapêutico, nada é esperado, nada é imposto. É permitido o movimento. Transitar por diferentes ideias, valores, posições, modos de ser. É possível ser o que se é e, ainda assim, ser legítimo, ser diferente e exercer o direito à diferença, sem rótulos, sem tipos pré-determinados, um ser único.

* partilhante é aquele que recorre à filosofia clínica