Plasticidade: somos os mesmos?

por Monica Aiub

Algumas pessoas acreditam que é impossível a alguém modificar-se, defendem que nascemos, vivemos e morremos da mesma forma, com pequenas alterações que, na realidade, não fogem a uma “determinação padrão”, própria daquela pessoa. “Ele/ela é assim, não tem jeito”, “Eu sou assim e não há como mudar”, afirmam.

Continua após publicidade

Outros defendem que as pessoas se modificam constantemente, a modificação pode ser tão rápida que é difícil afirmar algo sobre alguém. Hoje, por exemplo, um partilhante (paciente) trouxe como assunto para a clínica uma constante necessidade de verificação do que se apresenta: “Preciso me certificar de que as coisas e as pessoas continuam como sempre foram. Sempre há a possibilidade de se modificarem”. Diante desse questionamento, ele sente uma forte necessidade de checar, de perguntar, de certificação, o que provoca nas pessoas com as quais convive, certo desconforto, pois são questionadas, constantemente, sobre as mesmas coisas. Algumas delas respondem: “mas você não me conhece, não sabe que sempre fui assim?”, “você me ofende com suas desconfianças, parece que não me conhece!”.

Você leitor, duvida do que conhece? Duvida que as pessoas com as quais convive sejam o que sempre foram? É possível considerar a hipótese de uma transformação repentina? Você se percebe como sendo sempre o mesmo, ou como um ser em constante metamorfose?

Impermanência

Tudo flui, como afirmou Heráclito de Éfeso? Nada permanece o mesmo? Ou somos os mesmos? Você se considera o mesmo? Desde quando? Já percebeu modificações radicais em si mesmo? E pequenas transformações, quase imperceptíveis? Se tudo muda, nada permanece o mesmo, como você se situa diante da realidade? Como se situa diante de si mesmo? Como sabe se o “si mesmo” que conhece se manterá? Se tudo muda, como saber se suas escolhas farão sentido futuramente? Como se processam as modificações em nosso organismo? Como nosso organismo sobrevive a elas?

Continua após publicidade

Plasticidade

A capacidade de modificação interna de um sistema ou organismo, mediante fatores externos, é chamada plasticidade. Ela consiste em nossa disposição para mudanças, para transformações. Recentes estudos demonstram que nosso organismo é plástico, que nosso cérebro é plástico, modificando-se no decorrer de nossas vidas, a partir de nossas experiências. Apresentarei, no presente artigo, sucintamente, o argumento de Edelman, na Teoria da Seleção dos Grupos Neurais, com o objetivo de pensar sobre a plasticidade a partir da tese por ele defendida.

A partir do estudo do sistema imunológico dos vertebrados, Edelman (1987), com sua Teoria da Seleção de Grupos Neurais (TSGN), questionou o antigo modelo que defendia um processo através do qual o sistema imunológico “aprendia” a se defender através de um anticorpo que se moldava a um corpo estranho e produzia um anticorpo adequado para a defesa do organismo. Na teoria proposta por ele, temos milhões de anticorpos, e há uma escolha, entre eles, dos mais adequados a cada operação de defesa do organismo; o anticorpo escolhido é reproduzido e espalhado no organismo para o processo de defesa. A esse mecanismo ele nomeou “seleção clonal”, ganhando o Prêmio Nobel em 1972.

Continua após publicidade

Aproximando a tarefa do sistema nervoso à tarefa do sistema imunológico, Edelman apontou para um processo evolucionário através da competição entre células ou grupos de células no cérebro, que ele denominou “seleção somática”. Não há, segundo ele, um destino exato para cada célula nervosa em desenvolvimento, elas nascem, morrem e migram como “ciganas”, sem um caminho previamente determinado. Por isso cada cérebro é único. Assim sendo, mesmo antes de nascer, o feto já produz um sistema único, através da “seleção desenvolvimental” e da “seleção experimental” que ocorre quando este vem ao mundo com o nascimento, contando com processos de significação e valores.

Edelman preocupa-se com os processos de conexão, correlação e categorização das informações. Para ele tais processos encontram-se enraizados na seleção e agem sobre as unidades neurais primárias, já existentes na constituição do feto, formadas por grupos com cerca de 50 a 10.000 neurônios. Há incontáveis grupos desses em nossos cérebros (talvez, segundo ele, cerca de cem milhões). O feto, em seu desenvolvimento, cria um único padrão de conexões neurais, que é modificado seletivamente através da experiência. Esse processo ocorre por fortalecimento ou enfraquecimento de conexões, assim como pelo surgimento de novas conexões.

Através dos conceitos de “mapas” e “sinalização reentrante”, ele demonstra as relações entre os processos neuronais e a vida mental e comportamental. Um “mapa” é uma série de interconexões entre grupos neuronais sincronizados. A “sinalização reentrante” é uma comunicação entre os diferentes “mapas” ativos, capaz de criar. Usando uma metáfora musical, ele descreve o funcionamento da sinalização reentrante como um quarteto de cordas cujos músicos estão conectados aleatoriamente por cem mil fios que transmitem os sinais ocultamente, tornando o conjunto uma obra unificada. Cada músico interpreta sua parte individualmente, mas ao fazê-lo modula e é modulado pelo outro. Assim, a música é criada coletivamente.

Os processos de conexão constituem a possibilidade de uma contínua re-categorização. Os computadores possuem uma memória determinada, exata, cujos dados podem ser acessados a partir de comandos previamente programados. Contudo, a memória dos computadores não se amplia através de conexões que possa vir a estabelecer aleatoriamente, como ocorre conosco. Assim, diferentemente do que ocorre nos computadores, nossa memória não tem um limite determinado, e é capaz de criar novas conexões, livre de programas previamente estabelecidos.

Consciência "primária" e "elaborada"

Ao tratar da consciência, ele distingue entre consciência “primária” e consciência “elaborada”. A consciência “primária” consiste em ter imagens mentais no presente. Enquanto a consciência “elaborada” permite o reconhecimento dos atos e afecções de um sujeito pensante. Contudo, as relações estabelecidas entre o reconhecimento de uma cena vivida e um novo evento não é causal, não se relaciona necessariamente ao mundo exterior; mas é subjetiva, baseada no que fez sentido ou teve valor no passado. Essa capacidade humana é fruto da emergência de um novo circuito neural no processo evolutivo, ou seja, conforme o ser humano desenvolve, no processo evolutivo, novos circuitos neurais, modifica seu próprio cérebro e desenvolve novas habilidades.

Assim, segundo a teoria de Edelman, não somos os mesmos, estamos em constante modificação através de processos de conexões neuronais aleatórios, muitas vezes provocados pelas necessidades de resposta ao externo, mas também provocados por movimentos subjetivos: lembranças, crenças, sentimentos, aprendizagens…

Os processos pelos quais a capacidade humana de plasticidade emerge ainda é, para nós, um mistério. A tentativa de construir computadores capazes de significar, de adquirir linguagem, de aprender, ou seja, capazes da plasticidade inerente ao cérebro humano, demonstra que a semântica não é dissociada da sintaxe no processo de significação. A Inteligência Artificial, a princípio, parte da noção de inteligência e linguagem estritamente lógicas, e tenta simular o cérebro a fim de testar hipóteses e avançar nos estudos acerca dos processos neuronais.

Edelman, por defender essa necessidade, desenvolveu diferentes projetos no The Neurosciences Institute, em San Diego, projetando, juntamente com seus colegas pesquisadores, “animais sintéticos” para testar a TSGN. Essas criaturas foram chamadas DARWIN. O objetivo dessas pesquisas é simular o movimento neuronal durante o comportamento. Por esse motivo, a construção desses robôs supõe o desenvolvimento de percepção sensorial para o estudo do comportamento de aprendizagem. O que os DARWINS têm mostrado diz respeito a uma “fluidez” da consciência, uma plasticidade encontrada nos organismos vivos, tais quais Edelman propõe em seu darwinismo neural.

A partir de tais pesquisas, poderíamos questionar: Somos os mesmos? Como podemos nos posicionar em nossas relações mediante a constatação da fluidez da consciência, da plasticidade dos organismos, considerando a plasticidade do outro, assim como a de nosso próprio ser? Por outro lado, constatando a existência de fluidez e plasticidade, podemos afirmar que sempre fomos e sempre seremos de determinada maneira? Podemos acreditar na capacidade de mudança em nossas formas de significar o mundo? E mudanças no próprio mundo, seriam possíveis? O que você pensa a respeito?

Referências Bibliográficas:
EDELMAN GM. Bright Air, Brilliant Fire: On the Matter of the Mind. New York, NY: Basic Books, 1992.
_____. Neural Darwinism. New York: Basic Books, 1987.

KRICHMAR, J, et all. Characterizing functional hippocampal pathways in a
brain-based device as it solves a spatial memory task. The Neurosciences Institute, 10640 John Jay Hopkins Drive, San Diego, CA 92121. Contributed by Gerald M. Edelman, December 30, 2004.