A relação entre harmonia, equilíbrio e saúde

por Monica Aiub

Alguns dos textos aqui publicados tratam de harmonia, equilíbrio. O que são esses conceitos?

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Quando buscamos o significado da palavra harmonia no dicionário, encontramos alguns significados, tais como: "combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência que produz uma sensação agradável e de prazer; ausência de conflitos; conformidade, concordância". Na música, conjunto de sons relacionados, de acordo com uma ordem estabelecida. Nas artes plásticas, proporção de cores ou formas. O que podemos observar em comum entre essas definições é o fato de diferentes elementos relacionarem-se de maneira a produzir um "todo".

Nos dicionários especializados de filosofia o verbete diz respeito às especificidades da harmonia pitagórica ou da harmonia pré-estabelecida de Leibniz. De modo mais abrangente, o Dicionário de Filosofia de N. Abbagnano define-a como "ordem ou disposição finalista das partes de um todo".

A ideia de uma disposição finalista das partes de um todo remonta a ideia de um universo previamente organizado, com leis que o regem. Disposições harmônicas dizem respeito a disposições que refletem essas leis, essa organização natural. Por isso, uma das características do pensamento antigo é a necessidade de conhecimento da natureza, das leis do universo, para a aquisição de um estado de equilíbrio, para atingir a harmonia.

Buscando a gênese do conceito, nos deparamos com o momento histórico anterior ao surgimento da filosofia, no qual imperava o conhecimento mítico que fundamentava as questões humanas na vontade e na intervenção direta dos deuses. Explicar o mundo significava recorrer aos mitos, às narrativas de deuses e heróis capazes de intervir na natureza e na vida humana. A harmonia era um estado atingido através de rituais ou magia que restituíam ao humano e à natureza a necessária ligação com os deuses: origem e razão de tudo o que é, enfim, uma ordem, uma disposição finalista.

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A atitude iniciada e desenvolvida pela filosofia pré-socrática, que consistia em observar a natureza e a realidade, em procurar explicações justificadas em relações causais para os fenômenos naturais, criando teorias que fossem racionalmente explicadas e compreendidas, modificou o conceito de harmonia, de equilíbrio, que agora, ao invés de ser procurado na ligação com os deuses, passou a ser buscado no conhecimento da natureza. "Proporção ou mescla dos elementos corpóreos" era o conceito de harmonia dos pitagóricos. Novamente, uma disposição finalista para ordenar elementos, mas, desta vez, encontrada na natureza.

Esse novo olhar propiciou o surgimento dessa mesma atitude na medicina grega, conferindo-lhe um caráter de observação da natureza e da realidade do doente. Esse caráter levou a uma visão organicista da saúde, que compreende o todo e a conexão necessária entre as partes: corpo, mente, sociedade, natureza em harmonia. A saúde consiste, então, nas relações equilibradas entre as partes que constituem o todo. Assim, uma natureza desequilibrada ou uma sociedade doente pode gerar "desequilíbrios" ou "doenças" no ser humano, tanto quanto um desequilíbrio em uma parte do corpo pode trazer prejuízos ao todo do corpo.

O método proposto por Hipócrates (pai da medicina grega) para o cuidado consistia no conhecimento da natureza humana e na distinção da individualidade. O conhecimento do todo (elementos da natureza, da região, da organização social, dos hábitos) permitiria o conhecimento da parte e suas relações com o todo, buscando a saúde e o equilíbrio necessários a cada indivíduo. Permanece a ordem finalista encontrada a partir do estudo da natureza.

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Em Das Epidemias, Hipócrates afirma que "O esforço físico é alimento para os membros e para os músculos, o sono o é para as entranhas. Pensar é para o Homem o passeio da alma". O exercício, do corpo e da alma, seria o caminho para a manutenção da saúde, a profilaxia para a manutenção e aperfeiçoamento do equilíbrio natural. Se o pensar é o exercício da alma, tendo como objetivo o equilíbrio natural, o cuidado é necessário antes mesmo da manifestação de uma enfermidade. Daí a necessidade constante de uma dieta adequada, considerando dieta não apenas a organização dos alimentos, mas todo um modo de vida, incluindo as relações humanas, o exercício do pensar e o diálogo. Assim, a manutenção da saúde integral – corpo, alma, sociedade e natureza – é encontrada através do equilíbrio, da harmonia.

Na Modernidade, corpo, alma, natureza e sociedade passam a ser tratados como fenômenos isolados, estudados e abordados de maneira dissociada. O dualismo mente-corpo e o método analítico, a cisão natureza e cultura, a teoria do corpo isolado, o conceito de homem-máquina contribuíram para a formação de uma concepção fragmentada do universo. Essa concepção reflete-se nas questões humanas, na organização social, nos processos educacionais, no cuidado com a saúde.

No que se refere à saúde, o ser humano é cindido, sendo o corpo é separado dos demais aspectos, analisado em partes e, nelas, identificadas as possíveis patologias. O foco torna-se a patologia e a parte do corpo à qual está associada, em detrimento do todo do corpo e das demais dimensões presentes na compreensão integral do ser humano. Com isso, o médico que antes se dedicava muito mais à prevenção, à profilaxia do que à cura, ocupa a maior parte de seu tempo tratando doenças já estabelecidas. O conhecimento das circunstâncias, do ambiente, dos ventos, águas e regiões, dos hábitos, da organização familiar e social é deixado em segundo plano, e a investigação via exames laboratoriais é priorizada. Pesquisa-se o corpo isolado, seccionado, observam-se variáveis, criam-se leis que explicam, por meio de uma suposta relação causa e efeito, sinais e sintomas. O tratamento é generalizado e as características individuais são negligenciadas.

A filosofia, pouco a pouco, caracteriza-se como uma reflexão conceitual e não assume mais a função de cuidado, prevenção, equilíbrio e saúde do humano em todas as suas dimensões. Ainda há uma ordem finalista que é priorizada e permite a generalização, mas onde encontrá-la? No sujeito cartesiano, na racionalidade e na ciência, universais e necessários. Rapidamente, com o desenvolvimento da sociedade capitalista, essa lógica desencadeia uma ordem pautada no mercado e no lucro.

As questões suscitadas ou geradas pelos constantes avanços e especializações da ciência, pelo resultado de uma medicina cujo foco é a doença ao invés do humano, pela construção de formas de vida que seccionam o humano, pela excessiva valorização do mercado e do lucro fizeram necessária a busca de uma nova ordem, sobretudo no âmbito da ética.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) conceitua saúde como "'não simplesmente ausência de doença ou enfermidade', mas como 'um estado de completo bem-estar físico, mental e social'" (OMS, 2001: 17), resgatando a concepção de saúde integral da Antiguidade Clássica.

Diante das novas maneiras de viver e cuidar da humanidade, decorrentes dos avanços tecnológicos e do crescimento demográfico, as situações que envolvem a vida humana e do planeta tornaram necessárias novas abordagens. É preciso pensar numa ecosofia (GUATTARI, 1997) que contemple as dimensões do ambiente, das relações sociais e da subjetividade, ao invés de priorizar o mercado e o lucro. A função terapêutica e profilática da filosofia se atualiza: o exercício físico e a alimentação equilibrada são tão necessários à manutenção da saúde e à prevenção, quanto o exercício do pensar, compreendido em seu sentido grego-clássico de exercício filosófico enquanto cuidado, prevenção, equilíbrio e saúde do ser humano.

A ideia de uma ordem finalista externa (deuses, natureza) que nos oriente no sentido da harmonia, do equilíbrio e da saúde desfez-se juntamente com a "crise da razão". Diante disso, ao mesmo tempo em que tendemos a buscar desesperadamente essa ordem fora de nós, compreendemos que ela se estabelece a partir de nossas relações conosco, com o mundo, com os outros; compreendemos que ela é construída por nós. Temos uma natureza, mas não há uma forma "natural", única, de se viver. Nosso desafio está em re-inventar constantemente nossos modos de vida. Harmonia, equilíbrio, saúde são agora construídos por nós, constantemente re-inventados.

O que queremos construir: desemprego, marginalidade, solidão, angústia, desrespeito, dor ou cultura, arte, criação, pesquisa, sensibilidade, solidariedade, bem-estar? Como são os modos de vida que inventamos? Qual o sistema de valor que utilizamos para orientar a construção de nossos modos de vida? O que é harmonia e como encontrá-la?

As respostas a essas questões cabem muito mais a cada um de nós do que a uma "estrutura", uma "cúpula do poder". Deixo então algumas provocações de Felix Guattari, que pretendeu em seu pequeno ensaio As três ecologias, tolher a falta de graça e a passividade, como um exemplo de meios minúsculos, de ações individuais, que podem trazer grandes contribuições para a re-invenção de nossos modos de ser:

"Já sublinhei que é cada vez menos legítimo que as retribuições financeiras e de prestígio das atividades humanas socialmente reconhecidas sejam reguladas apenas por um mercado fundado no lucro. Outros sistemas de valor deveriam ser levados em conta (a 'rentabilidade' social, estética, os valores de desejo, etc). (…) Novas 'bolsas' de valores, novas deliberações coletivas dando chance aos empreendimentos os mais individuais, os mais singulares, os mais dissensuais, são convocados a emergir – se apoiando, particularmente, em meios de concertamento telemáticos e informáticos. A noção de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo não trazem "proveito" a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade. É o conjunto do futura da pesquisa fundamental e da arte que está aqui em causa" (1997: 50-52).

Referências bibliográficas
HIPÓCRATES. Conhecer, cuidar, amar: o Juramento e outros textos. Apresentada
e anotada por Jean Salem. São Paulo: Landy, 2002.
GUATTARI, F. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1997.
OMS. Relatório sobre a saúde no mundo: Saúde Mental: nova concepção, nova esperança. 2001. Disponível em http://www.ccs.saude.gov.br