Filosofia clínica garante autonomia do partilhante para tornar-se?

por Monica Aiub

Ainda tratando do papel do filósofo clínico na “arte de tornar-se”, tema dos artigos anteriores (clique aqui e leia), o leitor pergunta: “Não estaria o filósofo clínico imprimindo suas características, suas formas, ao partilhante (paciente)?

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Uma vez que o provoca ao movimento, não correria o risco de conduzi-lo por um caminho traçado pelo filósofo clínico, impedindo o partilhante de construir seu próprio caminho? Como é possível conciliar a autonomia e a condução da clínica?”.

Inicio citando Deleuze, no artigo “Quatro proposições sobre a psicanálise”, apresentado no Colóquio sobre Psicanálise e Política em Milão, em 1973, e publicado na série SaúdeLoucura2. Neste artigo, Deleuze questiona não a teoria psicanalítica, mas a prática da psicanálise como a arte de interpretar, apontando-a como “construída para impedir as pessoas de falarem e para lhes retirar todas as condições de enunciação verdadeira” (p.88), trata-se, afirma Deleuze, de uma “máquina de interpretação que faz com que tudo o que o paciente possa dizer seja imediatamente traduzido numa outra linguagem e que tudo o que ele diga seja julgado como querendo dizer outra coisa.” (p.89), apontando, no final do breve artigo, para uma crítica a uma perspectiva freudo-marxista, que se pauta nos “textos sagrados” de Freud e de Marx, ou seja, em interpretações prévias que significam a fala da pessoa não por ela mesma, mas por um conjunto circular de signos, significantes e significados estabelecidos por teorias interpretativas prévias.

A prática da filosofia clínica exige a escuta, não a partir de uma teoria interpretativa, mas a partir da própria pessoa. O filósofo clínico parte do não saber. Ele não sabe o que significa a fala do partilhante, nem possui formas de saber, exceto a partir da descrição e da significação do próprio partilhante. Por mais que tenhamos estudado as teorias filosóficas, elas se originam a partir de determinadas questões circunscritas à análise de uma época, de um contexto, de um problema e, por isso, não podem ser simplesmente aplicadas a contextos, épocas ou problemas distintos daqueles que as geraram. Claro que elas podem nos oferecer pistas, elementos, métodos que talvez possam ser utilizados em nossas construções conceituais, mas não nos oferece verdades, certezas absolutas. Ao contrário, nos instiga à dúvida, ao constante questionamento de nossos princípios, crenças e métodos, provocando-nos ao pensar autônomo.

O papel do filósofo clínico é provocar o partilhante a esse pensar autônomo. O olhar para a sua própria história, para a gênese de seus processos, para uma arqueologia de suas formas de vida tem como objetivo levá-lo a compreender seus processos, a apropriar-se de seus modos de vida, a compreender as relações existentes entre suas questões e o mundo no qual ele vive. Não se trata, como vimos no artigo anterior, de devanear a partir do sofrimento alheio, nem de criar soluções implausíveis, que levariam a frustrações e sofrimentos talvez maiores. Trata-se de dialogar, refletir, pesquisar, utilizando métodos construídos na história da humanidade, mas não sem antes observar a adequação de tais métodos às questões e aos contextos aos quais se aplicarão.

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Daí o exercício de escuta, necessário à clínica filosófica, tanto quanto é necessário à prática do filosofar. Não uma escuta que interpreta o dito a partir de referenciais previamente determinados, mas uma escuta que busca compreender o dito a partir daquele que diz, do lugar a partir do qual diz, na forma em que utiliza para dizer.

Como garantir que a compreensão do filósofo clínico aproxima-se ao que o partilhante quer dizer?

Em primeiro lugar, a fala do partilhante é contextualizada em sua historicidade. O que ele diz é dito através de uma história contada e significada por ele mesmo. Uma história que não é visitada somente uma vez; é revisitada, recontada várias vezes, em trechos e percursos diferentes. São os processos de coleta de dados – a partir da historicidade e dos processos divisórios, nos quais o partilhante primeiro conta sua historicidade, depois a reconta, dividida em trechos menores, para que possa detalhar cada trecho – que permitem ao filósofo clínico aproximar-se das formas de significação do partilhante.

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Em segundo lugar, os procedimentos de enraizamento constituem uma pesquisa epistemológica, através da qual são investigados os significados dos termos, dos conceitos, das formas de expressão utilizados pelo partilhante, aproximando um pouco mais o filósofo clínico das formas de significação do partilhante, que serão apresentadas ao clínico pelo próprio partilhante.

Chave da interpretação é apresentada pelo próprio partilhante

E, por fim, ao utilizar submodos (procedimentos clínicos), o filósofo clínico o faz a partir dos dados do partilhante, e nunca de seus próprios dados. Ou seja, todos os elementos utilizados nos procedimentos clínicos partem dos dados coletados com a pessoa. O filósofo clínico não parte das teorias filosóficas para abordar as questões apresentadas, mas das questões, de sua gênese, de suas relações com o mundo, com os modos de vida do partilhante e, somente com base em tais elementos é que inicia suas pesquisas, que culminarão em provocações ao partilhante. Essas aparecerão sempre a partir da linguagem, das formas, dos elementos pertinentes ao universo circundante da pessoa. Em outras palavras, a chave de interpretação do que é dito pelo partilhante, também é apresentada por ele.

Ainda, o direcionamento da clínica é sempre uma decisão do partilhante. Não há uma orientação prévia para onde se deva ir. Ou seja, não é o caso do filósofo clínico estabelecer, previamente ou não, o ponto onde se deva chegar. Não é o caso de definir ou indicar à pessoa formas melhores ou piores de ser. Menos ainda cabe tentar traçar caminhos para o outro. Seu papel é provocar a pensar nas possíveis consequências de se escolher um caminho, consequências não somente para a pessoa, mas também para o universo que a circunda, para outras pessoas com as quais se relaciona, para o todo social. Mas com base em que o filósofo clínico faz tais questionamentos, tais provocações à reflexão? Novamente, com base nos dados trazidos à clínica pelo partilhante.

Assim sendo, o filósofo clínico não é um conselheiro; não é alguém que avalia, a partir de seus referenciais teóricos, os posicionamentos da pessoa. É somente alguém que se dispõe, junto com a pessoa, a investigar os limites e possibilidades existentes para lidar com as questões.

O fato de não se pautar num saber ou num dever ser previamente traçados, não significa levar o partilhante a um solipsismo, a fechar-se em si mesmo, a tornar-se idiota (clique aqui e leia), sem ser capaz de enxergar algo para além de si. Ao contrário, supõe o movimento de investigação para além de si. Não uma orientação que parta de algo previamente estabelecido como normal, correto ou melhor; mas uma investigação, que parte do não saber em direção à construção de um saber, com elementos pesquisados na realidade, organizados a partir de métodos; um saber validado para aquele contexto, para aquelas questões, para aquela pessoa, em suas características singulares, existente em uma coletividade, também singular.

Assim, a prática da filosofia clínica não retira do partilhante a autonomia sobre seu existir, ao contrário, oferece-lhe elementos para que ele possa construir novos caminhos para seu existir. Talvez até caminhos não trilhados, também necessários quando a vida exige uma mudança de mentalidade.

Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G. Quatro proposições sobre a psicanálise. In LANCETTI, A (et. all.). SaúdeLoucura2. São Paulo: HUCITEC, 1997.

Para saber mais sobre Filosofia clínica:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia de pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Para entender filosofia clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro, WAK, 2008.
PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre, AGE, 1997.
Site do Interseção – Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo – www.institutointersecao.com

Para saber mais sobre Filosofia e Psicanálise:
Série Especial Filosofia & Psicanálise (DVD). Vols. 1 e 2. Revista filosofia dia a dia. São Paulo: Editora Digerati, 2010.

Filosofia clínica garante autonomia do partilhante para tornar-se?

por Monica Aiub

Ainda tratando do papel do filósofo clínico na “arte de tornar-se”, tema dos artigos anteriores (clique aqui e leia), o leitor pergunta: “Não estaria o filósofo clínico imprimindo suas características, suas formas, ao partilhante?

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Inicio citando Deleuze, no artigo “Quatro proposições sobre a psicanálise”, apresentado no Colóquio sobre Psicanálise e Política em Milão, em 1973, e publicado na série SaúdeLoucura2. Neste artigo, Deleuze questiona não a teoria psicanalítica, mas a prática da psicanálise como a arte de interpretar, apontando-a como “construída para impedir as pessoas de falarem e para lhes retirar todas as condições de enunciação verdadeira” (p.88), trata-se, afirma Deleuze, de uma “máquina de interpretação que faz com que tudo o que o paciente possa dizer seja imediatamente traduzido numa outra linguagem e que tudo o que ele diga seja julgado como querendo dizer outra coisa.” (p.89), apontando, no final do breve artigo, para uma crítica a uma perspectiva freudo-marxista, que se pauta nos “textos sagrados” de Freud e de Marx, ou seja, em interpretações prévias que significam a fala da pessoa não por ela mesma, mas por um conjunto circular de signos, significantes e significados estabelecidos por teorias interpretativas prévias.

A prática da filosofia clínica exige a escuta, não a partir de uma teoria interpretativa, mas a partir da própria pessoa. O filósofo clínico parte do não saber. Ele não sabe o que significa a fala do partilhante, nem possui formas de saber, exceto a partir da descrição e da significação do próprio partilhante. Por mais que tenhamos estudado as teorias filosóficas, elas se originam a partir de determinadas questões circunscritas à análise de uma época, de um contexto, de um problema e, por isso, não podem ser simplesmente aplicadas a contextos, épocas ou problemas distintos daqueles que as geraram. Claro que elas podem nos oferecer pistas, elementos, métodos que talvez possam ser utilizados em nossas construções conceituais, mas não nos oferece verdades, certezas absolutas. Ao contrário, nos instiga à dúvida, ao constante questionamento de nossos princípios, crenças e métodos, provocando-nos ao pensar autônomo.

O papel do filósofo clínico é provocar o partilhante a esse pensar autônomo. O olhar para a sua própria história, para a gênese de seus processos, para uma arqueologia de suas formas de vida tem como objetivo levá-lo a compreender seus processos, a apropriar-se de seus modos de vida, a compreender as relações existentes entre suas questões e o mundo no qual ele vive. Não se trata, como vimos no artigo anterior, de devanear a partir do sofrimento alheio, nem de criar soluções implausíveis, que levariam a frustrações e sofrimentos talvez maiores. Trata-se de dialogar, refletir, pesquisar, utilizando métodos construídos na história da humanidade, mas não sem antes observar a adequação de tais métodos às questões e aos contextos aos quais se aplicarão.

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Daí o exercício de escuta, necessário à clínica filosófica, tanto quanto é necessário à prática do filosofar. Não uma escuta que interpreta o dito a partir de referenciais previamente determinados, mas uma escuta que busca compreender o dito a partir daquele que diz, do lugar a partir do qual diz, na forma em que utiliza para dizer.

Como garantir que a compreensão do filósofo clínico aproxima-se ao que o partilhante quer dizer?

Em primeiro lugar, a fala do partilhante é contextualizada em sua historicidade. O que ele diz é dito através de uma história contada e significada por ele mesmo. Uma história que não é visitada somente uma vez; é revisitada, recontada várias vezes, em trechos e percursos diferentes. São os processos de coleta de dados – a partir da historicidade e dos processos divisórios, nos quais o partilhante primeiro conta sua historicidade, depois a reconta, dividida em trechos menores, para que possa detalhar cada trecho – que permitem ao filósofo clínico aproximar-se das formas de significação do partilhante.

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Chave da interpretação é apresentada pelo próprio partilhante

E, por fim, ao utilizar submodos (procedimentos clínicos), o filósofo clínico o faz a partir dos dados do partilhante, e nunca de seus próprios dados. Ou seja, todos os elementos utilizados nos procedimentos clínicos partem dos dados coletados com a pessoa. O filósofo clínico não parte das teorias filosóficas para abordar as questões apresentadas, mas das questões, de sua gênese, de suas relações com o mundo, com os modos de vida do partilhante e, somente com base em tais elementos é que inicia suas pesquisas, que culminarão em provocações ao partilhante. Essas aparecerão sempre a partir da linguagem, das formas, dos elementos pertinentes ao universo circundante da pessoa. Em outras palavras, a chave de interpretação do que é dito pelo partilhante, também é apresentada por ele.

Ainda, o direcionamento da clínica é sempre uma decisão do partilhante. Não há uma orientação prévia para onde se deva ir. Ou seja, não é o caso do filósofo clínico estabelecer, previamente ou não, o ponto onde se deva chegar. Não é o caso de definir ou indicar à pessoa formas melhores ou piores de ser. Menos ainda cabe tentar traçar caminhos para o outro. Seu papel é provocar a pensar nas possíveis consequências de se escolher um caminho, consequências não somente para a pessoa, mas também para o universo que a circunda, para outras pessoas com as quais se relaciona, para o todo social. Mas com base em que o filósofo clínico faz tais questionamentos, tais provocações à reflexão? Novamente, com base nos dados trazidos à clínica pelo partilhante.

Assim sendo, o filósofo clínico não é um conselheiro; não é alguém que avalia, a partir de seus referenciais teóricos, os posicionamentos da pessoa. É somente alguém que se dispõe, junto com a pessoa, a investigar os limites e possibilidades existentes para lidar com as questões.

O fato de não se pautar num saber ou num dever ser previamente traçados, não significa levar o partilhante a um solipsismo, a fechar-se em si mesmo, a tornar-se idiota (clique aqui e leia), sem ser capaz de enxergar algo para além de si. Ao contrário, supõe o movimento de investigação para além de si. Não uma orientação que parta de algo previamente estabelecido como normal, correto ou melhor; mas uma investigação, que parte do não saber em direção à construção de um saber, com elementos pesquisados na realidade, organizados a partir de métodos; um saber validado para aquele contexto, para aquelas questões, para aquela pessoa, em suas características singulares, existente em uma coletividade, também singular.

Assim, a prática da filosofia clínica não retira do partilhante a autonomia sobre seu existir, ao contrário, oferece-lhe elementos para que ele possa construir novos caminhos para seu existir. Talvez até caminhos não trilhados, também necessários quando a vida exige uma mudança de mentalidade.

Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G. Quatro proposições sobre a psicanálise. In LANCETTI, A (et. all.). SaúdeLoucura2. São Paulo: HUCITEC, 1997.

Para saber mais sobre Filosofia clínica:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia de pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Para entender filosofia clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro, WAK, 2008.
PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre, AGE, 1997.
Site do Interseção – Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo – www.institutointersecao.com

Para saber mais sobre Filosofia e Psicanálise:
Série Especial Filosofia & Psicanálise (DVD). Vols. 1 e 2. Revista filosofia dia a dia. São Paulo: Editora Digerati, 2010.