Uma ‘conversa’ com Jung

por Roberto Goldkorn

De repente travei. Estava diante de alguns e-mails, com pedidos de ajuda dos mais variados. Casos 'cabeludos' como dizia minha mãe. Nada fora da rotina desses últimos vinte anos. Mas a tela do computador foi ficando vermelha, uma fumaça começou a envolver o monitor e eu travei. Fiquei sem ação, imobilizado, impotente diante daquelas pessoas por trás de cada mensagem. Minha mente escureceu e de repente a tela voltou ao normal e eu estava teclando com alguém, cujo nick era Jung. Achei engraçado e disse que eu sempre sonhei em conversar com o mestre *Carl Gustav Jung. Ao que ele respondeu, “É o próprio, só não posso dizer em carne e osso, rs, rs, rs”. Ainda meio alucinado disse: “Quem dera…o grande mestre morreu faz tempo, eu queria tanto que ele estivesse por aqui agora, nunca precisei tanto dele.” “Pois pode falar o que lhe aflige. A morte, e você deveria saber disso, não encerra uma história e sim uma fase daquilo que chamamos vida.” "É verdade", eu disse. "Mas se você é mesmo o mestre Jung me diga como interpreta a história da sua vida?"

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Jung: “Em última análise, nunca se sabe como as coisas acontecem. A história de uma vida começa em um dado lugar num ponto qualquer do qual se guardou a lembrança, e já então tudo era extremamente complicado. O que se tornará essa vida ninguém sabe. Por isso a história é sem começo e o fim é apenas aproximadamente indicado".

Com essa resposta bem 'junguiana' fiquei todo arrepiado e ainda embalado num leve transe resolvi continuar:

“Estou vivendo uma crise. Não sei se o meu esforço em ajudar cada uma dessas pessoas que me escreve ou me procura, vai dar em alguma coisa, vai ser de alguma importância. Às vezes acho tão pouco, tão ínfimo o que faço, estou desanimado…”

Jung: “Tudo o que começa sempre começa pequeno. Não devemos nos deixar abater pelo laborioso trabalho executado discreta, mas conscienciosamente com cada pessoa em particular, embora nos pareça que a meta que buscamos está longe demais pra ser alcançada.No entanto a meta do desenvolvimento e da maturação da personalidade individual está ao nosso alcance. É na medida em que nos convencemos que o portador de vida é o indivíduo, se conseguirmos que pelo menos uma única árvore dê frutos, ainda que mil outras permaneçam estéreis, já teremos prestado um serviço no sentido da vida.mas quem tiver a pretensão de fazer prosperar até o último grau tudo o quanto deseja crescer vai verificar que as ervas daninhas, que sempre vingam melhor, logo lhe crescerão por cima da cabeça”.

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“Mas cada vez se torna mais difícil saber qual a técnica psicoterápica mais indicada para esse ou para aquele cliente…”

Jung: "A psicoterapia pode ser praticada de várias maneiras.Da psicanálise ou coisa que o valha, até o hipnotismo, ou mais baixo ainda até um pouco de mel e cocô de pombos por dentro. Tudo isso pode dar eventualmente bons resultados. Pelos menos é o que parece numa visão superficial”.

“Pois é, tenho tido muitas dúvidas sobre a possibilidade de qualquer técnica trazer a felicidade para as pessoas”.

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Jung: “Eis porque o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o cliente num estado impossível de felicidade, mas sim de possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento”.

“Tenho a sensação com algumas pessoas que estou enxugando gelo, se é que me entende. Que no fundo não querem sair do buraco, e estão apenas me usando, como acontece com outros profissionais.”

Jung: "Ele (o paciente neurótico) procura para curar-se esse ou aquele médico, esse ou aquele método, e em nenhum dos casos colabora. É preciso sair na chuva para se molhar. Sem a completa boa vontade e seriedade absoluta do paciente, a cura não e dá. Não há curas mágicas da neurose".

“Mas e a psicanálise…”

Jung: “Nem o médico nem o paciente devem se iludir, imaginando que o simples “analisar” é suficiente para remover a neurose. Isso seria um engano e um auto-engano. No fim das contas é a realidade moral que decide infalivelmente entre a saúde e a doença”.

“Sinto que a sociedade é que está doente. E alguns das pessoas que se sentem desajustadas, o são somente porque superaram a cultura imbecilizante a sua volta.”

Jung: “A humanidade em sua essência continua num estágio infantil, psicologicamente falando. Essa fase não pode ser omitida. A grande maioria necessita de autoridade, diretriz, lei. Tal fato não pode ser negligenciado. A superação paulina da lei só serve para aqueles que são capazes de por a Alma no lugar da consciência moral. São poucos os que estão aptos para isso… e esses poucos só trilharão o caminho por uma coação interna, para não dizer pelo sofrimento, pois esse caminho é como o fio da navalha.”

“Podemos ver isso no caso das torcidas de futebol, das grandes manifestações de fanatismo religioso…”

Jung: “Por conseqüência todo indivíduo é inconscientemente pior em sociedade do que quando atua por si só. O motivo é que a sociedade o arrasta e na mesma medida o torna isento de sua responsabilidade individual. Um grupo numeroso de pessoas ainda que composto de indivíduos admiráveis, revela a inteligência e a amoralidade de um animal pesado, estúpido e predisposto a violência. Quanto maior é a organização, mais duvidosa é a sua moralidade e mais cega a sua estupidez… A sociedade acentuando automaticamente as qualidades coletivas dos seus indivíduos representativos, premia a mediocridade, e tudo o que se dispõe a vegetar num caminho fácil e irresponsável”.

“Então a idéia do pecado…”

Jung: “No momento que o espírito humano conseguiu inventar a idéia do pecado, surgiu a parte oculta do psiquismo; em linguagem analítica- a coisa recalcada. O que é oculto é segredo. Possuir um segredo tem o mesmo efeito de um veneno, de um veneno psíquico que torna o portador do segredo estranho à comunidade. Mas esse veneno em pequenas doses pode ser um medicamento preciosíssimo e até uma condição prévia indispensável a qualquer diferenciação individual. Tanto é que o homem primitivo já sente fatalmente a necessidade de inventar mistérios a fim de, possuindo-os proteger-se contra sua absorção pura e simples no inconsciente da coletividade, como se isso fosse um perigo mortal para a alma… Um segredo partilhado com diversas pessoas é tão construtivo quanto um segredo estritamente pessoal é destrutivo”.

Nesse momento o telefone tocou e a minha filha veio me pedir para ajuda-la a abrir um vidro de palmito. A 'realidade' voltou abruptamente e a conexão virtual caiu. Mas felizmente eu havia salvado tudo.

*Carl Gustav Jung: psiquiatra suíço (1875-1961)

Os trechos das 'conversas' com Jung foram retirados dos seus livros: A Prática da Psicoterapia, O Eu e o Inconsciente, (Editora Vozes) e Memórias Sonhos e Reflexões ( Ed. Nova Fronteira)