Escassez de água não é culpa da natureza

por Pedro Tornaghi

"Se o conhecimento pode criar problemas, não será através da ignorância que poderemos solucioná-los"
Isaac Asimov

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Está correndo pela internet a informação que quando Nova York teve problemas com a escassez de água há anos atrás, adotou uma estratégia até aqui vitoriosa. O prefeito decidiu comprar as terras laterais ao Rio Hudson, desde sua nascente até a cidade e reflorestá-las, recompondo uma generosa mata ciliar.

Não sei se a história é verdadeira, mas a solução é legítima, e já conhecida nossa desde os tempos do império, quando D. Pedro II teve problema semelhante e desapropriou e reflorestou uma ampla área de plantação de café e cana e criou aquela que hoje é conhecida como Floresta da Tijuca, protegendo mananciais de água que sustentavam na época o centro da cidade, através do famoso aqueduto que passava por cima dos Arcos da Lapa.

Um século e meio depois, essa água ainda supre parte da cidade do Rio de Janeiro, sou um dos felizardos que, por morar em Santa Tereza, tem um lar abastecido por essa água. Meus amigos de outros bairros quando me visitam comentam a qualidade da água, com pouco cloro e menos tratamento, que apresenta uma maior pureza e alcalinidade que a água tratada do Guandu, que serve à grande maioria dos cariocas.
Escassez de água: culpar a natureza é infantilidade

Quando tomo banho em casa de amigos servidos pelo Guandu, me sinto tentado, ao chegar em casa, de tomar novo banho. Meus familiares quando se banham em minha casa, comentam como a pele fica mais macia e menos irritada.

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Hoje, andando à tarde por Santa Tereza, encontrei vizinhos conversando sobre o atual problema da pouca água disponível. Notamos no papo que nenhum de nós até agora tinha ouvido alguma autoridade, municipal, estadual ou federal citar o desmatamento da mata ciliar de rios como problema a ser enfrentado para a solução do desafio. Alguns pedem à população o consumo consciente – o que certamente é necessário como atitude emergencial – outros, como o governador de São Paulo falam em obras faraônicas de dessalinização de água na Bacia de Santos e bombeamento da mesma, montanha acima para usufruto da metrópole. Não vejo nem o prefeito, nem o governador de São Paulo, e muito menos o governo federal, lembrar que São Paulo é atravessado por um rio absolutamente inutilizado para a vida, como o Tietê.

Em 2002 o Sesc de São Paulo organizou uma bela exposição sobre a Amazônia, com ambientação de Gringo Cardia, os participantes tinham a oportunidade de adentrar uma simulação de floresta tropical em plena Sampa. Para o evento foram trazidos pajés do Xingu, que nunca haviam saído de suas aldeias. Me lembro da expressão de assombro e horror deles, quando foram levados a uma ponte sobre o rio Tietê e um deles sentenciou: Mataram o rio! Sim, podemos desqualificar a visão romântica do índio brasileiro, mas não poderemos sobreviver nesse planeta sem escutar a natureza com a mesma sinceridade e sensibilidade com que eles sempre procuraram escutar.

O problema atual da água não acontece por um capricho fortuito da natureza de provocar a maior seca dos últimos 85 anos como afirma o secretário de meio ambiente do Rio, é muito fácil, mas infantil, culpar a natureza e manter os olhos fechados para o que é responsabilidade nossa na seca que atravessamos. E não resolve. Vende-se a impressão de tudo estar nas mãos de alguém mais poderoso que nós, a natureza, um ser por vezes cruel e caprichoso. Não é bem assim.

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As chuvas que sempre vieram da Amazônia para o Sudeste, verdadeiros e gigantescos rios aéreos que desde sempre mataram a sede e regaram as plantações do coração econômico do país, não têm chegado aos estados de São Paulo, Minas e Rio em parte por serem impelidas de volta por bolhas de calor criadas pelas grandes áreas asfaltadas dos grandes centros e pelo desmatamento rural. Minas Gerais, onde nascem os principais rios que abastecem de água metade dos estados brasileiros, entre eles o São Francisco e o Paraíba do Sul, tem sido campeão nacional de desmatamento nos últimos anos, o Estado do Rio tem apresentado níveis de aridez semelhantes ao do Nordeste atual.

No passado, Rio e Nordeste já apresentaram níveis semelhantes de umidade, mas em outras condições. Quando Cabral chegou ao país tupiniquim, toda a costa leste do Brasil era coberta pela Mata Atlântica, 200 quilômetros a partir da costa para o interior. Terras que hoje conhecemos como áridas na Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte deixaram de ser mata generosa apenas pelo uso desrespeitoso do homem.

Pode ser também por atitude humana que voltem a ser férteis e fonte de vida abundante. Se passarmos a nos responsabilizar pela situação em vez de, em reducionismos baratos, declararmos: o problema é que não choveu! O primeiro passo poderá vir se pararmos de culpar a estiagem e usá-la como alerta para discutir em maior profundidade o assunto e mudar atitudes. Incluindo nessa reflexão e atitudes, claro, as autoridades governamentais. Que comecem – e comecemos junto – por replantar a mata ciliar dos pequenos e grande rios e caminhar na direção de extirpar a poluição deles.