Medo de sentir leva ao medo de falar

por Rosemeire Zago

Este é o quinto artigo de uma série sobre maus-tratos à criança e ao adolescente. Para ler o anterior clique aqui.

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O medo de sentir a dor, “aparentemente” diluída pelo tempo, faz com que adultos que sofreram algum tipo de abuso quando crianças, continuem reprimindo, negando e ignorando seus sentimentos, não só os dos primeiros anos, como também tendem a reprimir tudo o que sentem no presente.

É compreensível não queremos mais se sentir como aquela criança pequena e indefesa que fomos um dia, mas talvez não saibamos que podemos estar repetindo, ainda que sem perceber, os mesmos abusos, talvez de outra forma, mas sentindo-se exatamente igual àquela criança.

Pedagogia negra e mentira

O medo de sentir leva ao medo de falar, ao silêncio de tudo que se viveu, perpetuando assim uma dor que não para de doer, apenas se expressa muitas vezes de outra forma. Isso acontece principalmente quando a criança foi vítima da mentalidade mentirosa, chamada pela psicóloga Alice Miller de pedagogia negra: “Educação que visa dobrar a vontade da criança, transformando-a num ser submisso e obediente por meio do emprego explícito ou velado do poder, da manipulação e da repressão”.

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Muitas vezes é muito difícil para um adulto se lembrar ou admitir, até para si mesmo, que foi vítima de algum tipo de abuso, principalmente se não tem com quem partilhar suas dores e obter a compreensão e a validação de suas lembranças silenciadas por tantos anos. Relembrar tanta dor e enfrentar sozinho tudo que viveu torna-se insuportável, parece melhor manter tudo escondido, como se não tivesse vivido nada do que viveu. Essa negação do sofrimento e humilhação sofrida pela criança é necessária para sua sobrevivência quando criança. Porém, se mais tarde o adulto continua negando tudo que sofreu, pode levá-lo à cegueira emocional e as repetições de padrões nos relacionamentos afetivos, ainda que queira tanto esquecer.

A criança não quer ser rejeitada, humilhada, agredida, e por isso submete-se, esperando, muitas vezes em vão, ser aceita, compreendida e amada. Mas parece que esquecemos que nosso corpo armazena todas as informações sobre as experiências da nossa vida, e quando conseguimos interpretar os sintomas físicos, relacionando-os com a dor original e os sentimentos gerados, muitos sintomas regridem como um milagre. Muitas dores corporais só cedem quando se consegue confrontar-se com toda a verdade vivida e reprimida.

Muitos profissionais (médicos e até psicólogos) evitam falar da infância de seus pacientes, pois não conseguem lidar nem com suas próprias emoções, e por medo de reviverem os traumas da própria infância, raramente acessam ou buscam a dor original de seus pacientes. E infelizmente, os sintomas também são silenciados com remédios, sem a busca preciosa de suas origens. Está cada vez mais comprovado que o estado de saúde melhora quando a pessoa tem a possibilidade de partilhar suas vivências dolorosas a alguém que tem interesse, compreensão e conhecimento das consequências dos maus tratos sofridos pela criança, levando a sério, sem subestimar suas dores, o que Alice Miller chama de “testemunha conhecedora”.

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Acontece que o adulto continua a agir como a criança, ou melhor, não age e nem reage, mas se cala como a criança que permanece sozinha com o sofrimento gerado pelo abuso, e continua submetendo-se muitas vezes a profissionais, da mesma forma que era obrigada a se submeter aos seus pais. Ou ainda, continua submetendo-se a relacionamentos destrutivos, onde não há respeito e sequer amor, seja na área afetiva e até profissional.

Infelizmente nem todos têm conhecimento ou coragem para relacionar suas dores e/ou sintomas físicos com suas dores emocionais reprimidas em suas mentes. Continuam a acreditar que foram culpados, ou que devem “esquecer” o que, ou quem, tanto os machucou. Confrontar a verdade pode sim ajudar todos que foram vítimas de algum tipo de abuso a libertarem-se de suas dores, mas para isso é importante falar, buscar ajuda, deixar sair aquilo que um dia tanto doeu e que continua a doer.

O processo pode levar algum tempo, mas com certeza é melhor do que viver em silêncio, por um dia ter aprendido lá na sua infância que esse era o melhor caminho, perpetuando um segredo que passa a ser escondido até de você mesmo.