Apagão existencial

por Juliana Zacharias – psicóloga do NPPI

O apagão do último mês, além de trazer à tona várias questões políticas e de infraestrutura, nos fez refletir sobre algumas implicações da tecnologia em nossa vida. Como sempre, pudemos pensar em fatores positivos e negativos envolvidos nesse episódio.

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Cada um de nós estava vivendo normalmente um dia de terça-feira: com o trânsito, o trabalho, o happy hour, o jantar em casa com a família, a novela das 20h00. De um momento para outro, tudo ficou escuro. A primeira sensação foi a estranheza que sempre nos causa a escuridão, entretanto, acreditávamos tratar-se de uma situação isolada. Com o passar do tempo, especialmente por meio dos celulares com acesso à internet, fomos percebendo que a dimensão do problema era bem maior.

Um dos aspectos positivos da tecnologia aparece então: a possibilidade de nos comunicarmos e de trocarmos informações mesmo em meio ao caos. O rádio (que apesar de, enquanto tecnologia, ser “antiga”) foi fonte de apoio a muitos. Os celulares que se mantiveram funcionando cooperaram para que muitas pessoas pudessem se acalmar e buscar alternativas para sair das situações mais difíceis.

Entretanto, ali mesmo no escuro, iluminada por velas, comecei a pensar sobre como criamos ferramentas e acabamos dependentes das nossas próprias criações. Sem querer fazer discurso “antitecnológico” (afinal, estou escrevendo no Word e este texto será postado num site), é importante pensarmos em quem somos nós APESAR de tudo o que criamos.

Naquela escuridão, que um dia foi familiar ao ser humano (e que até hoje é, em algumas comunidades) entramos em pânico: nos sentimos perdidos, com medo. Medo da violência, absolutamente justificável. Mas boa parte daquela insegurança se devia ao fato das coisas daquela noite não estarem “sendo” como costumam ser no nosso dia-a-dia atual, pois nossos “automatismos” estavam quase todos desligados: elevadores, telefones, TV´s, computadores, luzes, faróis, etc.

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Pensar, criar, fazer ciência, produzir ferramentas são capacidades que garantiram nossa perpetuação enquanto espécie. Esse alívio, porém, de compensar nossas fraquezas e fragilidades com nossas criações tecnológicas acaba por ser frágil. No fundo, nosso desejo de controle sobre a civilização e, principalmente, sobre nossa vida, acaba por ser possível apenas parcialmente. Quantos de nós não se conformam diante do fato de um médico, um aparelho de exames, um remédio, uma quimioterapia não serem suficientes para impedir que alguém morra de câncer, como se a morte não fosse algo inevitável em nossa experiência? Quantos não acham impossível que um avião tenha caído, como se a ousadia não fosse nossa, de estar voando? Quantos de nós não ficam sem saber o que fazer quando a TV desliga, como se ali ao lado não estivesse a nossa família? Ou, no mínimo, o seu próprio ser (seu mundo interno, seus pensamentos, sentimentos e sensações) dispostos a lhe fazer companhia?

Nossos artefatos são feitos à nossa imagem e semelhança. Claro que podemos sempre buscar a maior perfeição e eficiência nos nossas criações. Mas é preciso ter em mente sua falibilidade, aliás, reflexa da própria condição humana dos seus criadores. Nos desesperamos e sofremos em busca de um sempre maior desenvolvimento técnico, como se em algum momento pudéssemos alcançar a perfeição, a imortalidade, o controle absoluto sobre nossas emoções e comportamentos. Mas a natureza, o acaso, o instinto, e o próprio caos estão aí, sempre nos lembrando que somos parte de um todo, que somos mortais, pequenos e dependentes um dos outros.

Essa ideia nos parece terrível no primeiro momento. Contudo, se mergulharmos nesse pensamento, o alívio que sentiremos ao não ter mais que buscar o impossível é delicioso. Esse estado não é permanente, pois logo estaremos novamente em busca de mais eficiência, segurança e controle. Mas se, cada um de nós, de vez em quando, pudesse senti-lo estaríamos melhor preparados para todos os “apagões” da vida.

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