Será que fui dopado?

por Danilo Baltieri

"Estou com uma enorme dúvida: acordei na manhã de domingo sem ter ideia de onde estava, até que reconheci que estava na minha casa, no meu quarto. Logo me senti desesperado por não saber como tinha chegado em casa. Olhei pela janela e vi meu carro na garagem, chequei meus pertences e estava tudo em ordem, nada foi roubado, as portas e janelas de casa estavam devidamente chaveadas, bem como meu carro. Porém, não tenha a mínima ideia de como cheguei em casa. Na noite anterior estive em uma festa, bebi bastante e até onde consigo lembrar, estava no interior de uma casa noturna com alguns amigos de longa data. Não consigo me recordar de ter bebido nada além de vodka com refrigerante que eu mesmo servi em um copo limpo. Posso ter sido drogado ou foi só o abuso do álcool?"

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Resposta: A amnésia total ou parcial para eventos ocorridos durante o período de intoxicação alcoólica é conhecida como “blackout”. Durante o período de intoxicação, o bebedor estará consciente e poderá travar discurso aparentemente normal com terceiros, bem como desempenhar atividades motoras e cognitivas.

Alguns comportamentos de indivíduos que reportaram “blackout” após o consumo intenso de bebidas alcoólicas têm sido registrados. O mais comumente relatado é o seguinte: após o consumo de bebidas, o bebedor dirige por longas distâncias, mantém conversações corriqueiras com conhecidos, chega em casa e, na manhã seguinte, não se lembra de como chegou, como estacionou o carro, onde está o carro…

O “blackout” pode ser completo ou parcial (também chamado de fragmentado). O completo é a amnésia total para eventos significativos que seriam recordados em circunstâncias onde o álcool não teria sido ingerido. O fragmentado (ou parcial) ocorre mais frequentemente. Neste último tipo, o bebedor lembra-se de fragmentos do período em que a ingestão de bebidas alcoólicas aconteceu, especialmente se estimulados por terceiros.

Fatores como: grande ingestão alcoólica (*mais de 60 ou 70 gramas de etanol) e rápida ingestão são predisponentes para a ocorrência de “blackouts”.

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Ao contrário de antigas concepções de que o “blackout” seria uma consequência improvável do consumo pesado de bebidas alcoólicas entre não dependentes; pessoas que façam grande ingestão de bebidas alcoólicas em um período relativamente curto de tempo podem de fato apresentar tal quadro. Por exemplo, alguns estudos realizados com estudantes universitários têm revelado alta prevalência quanto à ocorrência desse quadro.

Em um estudo publicado por Goldwin (1995), cerca de 33% dos estudantes de medicina do primeiro ano reconheceram ter sofrido pelo menos um episódio de “blackout” ao longo da vida. Outra pesquisa com homens finlandeses revelou que 35% experimentaram pelo menos um episódio de “blackout” no ano anterior à pesquisa (Poikolainen, 1982). No entanto, nem todas as pessoas que fazem uso agudo e intenso de bebidas alcoólicas demonstram tal quadro, o que sugere que existe suscetibilidade individual para o problema.

A natureza traumática do “blackout”, caracterizada pela sensação de perda de controle e pelas consequências altamente indesejadas do comportamento, frequentemente colabora para que o indivíduo reduza ou mesmo deixe de consumir bebidas alcoólicas nas próximas oportunidades.

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Na verdade, o consumo de bebidas alcoólicas exerce efeitos sobre a formação da memória. Em linhas gerais, a formação da memória envolve os seguintes processos: codificação inicial (registro e interpretação de estímulo), armazenamento (consolidação e manutenção desse estímulo), e recuperação (busca e recuperação do conteúdo antes armazenado). Dentre esses processos, algumas evidências indicam que o álcool exerce maior efeito sobre o primeiro processo citado.

Existem algumas possibilidades neurobiológicas que explicam o notável prejuízo de memória durante o período de intoxicação alcoólica. Através da ação antagonista sobre o neurotransmissor Glutamato, o álcool reduz a resposta celular **hipocampal (especialmente células piramidais CA1) aos sinais provenientes de neurônios de outras regiões cerebrais. Existem outros sistemas e substâncias neurais envolvidas nesse processo, como a adenosina e as fosfodiesterases.

Embora o fenômeno do “blackout” seja altamente prevalente entre não dependentes, também pode ser um sinal de alarme tanto para o desenvolvimento futuro do quadro de Síndrome de Dependência Alcoólica quanto para complicações relacionadas com o quadro de dependência já instalado.

Alguns estudos têm afirmado que a forma como o bebedor interpreta o episódio de “blackout” é decisivo para a resolução ou o avanço do problema. Também, qualquer falha para evitar novos episódios é um forte sinal de problema atual.

Certamente, se outras substâncias psicoativas são usadas juntamente com o consumo pesado de bebidas alcoólicas, as complicações sobre a memória (e outras funções cerebrais) são maiores.

* 70 gramas de etanol corresponde à ingestão de 200 ml de uma bebida com concentração alcoólica de 45%.

** é uma das principais estruturas cerebrais relacionadas à memória.

Abaixo, forneço algumas referências interessantes para consulta:

Goodwin DW. Alcohol amnesia. Addiction. 1995; 90(3):315-7.

Lee H, Roh S, Kim DJ. Alcohol-induced blackout. International journal of environmental research and public health. 2009; 6(11):2783-92.

Poikolainen K. Blackouts increase with age, social class and the frequency of intoxication. Acta neurologica Scandinavica. 1982; 66(5):555-60.