Primeiro restaurante do mundo tinha objetivo de oferecer refeição saudável

Por Rosa Fonseca

“Era como um pequeno castelo de um único cômodo: uma imensa sala de jantar. Observei com espanto mesas pequenas, dispostas lado a lado, com espaço entre si. A surpresa foi maior quando vi pequenos grupos e pessoas desacompanhadas chegarem a diferentes tempos, sem cumprimentarem-se, sem mesmo parecer conhecerem-se. Sentavam sem olhar-se e comiam separadamente em louças individuais pratos em pequenas porções feitos à sua escolha, sem falarem entre si. Sequer ofereceram-se para repartir sua refeição!”

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O viajante estupefato que passa por Paris em 1801 descreve um restaurante. “Vai ver ele era de um lugar remoto do planeta, onde não tinha nem restaurante.” – eis Marie, com a astúcia de seus 10 imaginativos anos.

No livro Fisiologia do Gosto, de 1826, Brillat-Savarin descreve restaurantes com uma minúcia tão fantástica que parece ficcional, como se escrevesse sobre um futuro distante no qual as pessoas seriam obrigadas a comer em estranhos lugares. Mais ficcional é imaginar um mundo sem restaurante, onde haveria fibra ótica, satélite, celular, Apple, redes sociais e células tronco, mas MaC, KFC, DOG e PF seriam códigos usados por motoristas de van.

Imaginemos que um prefeito caprichoso promulgasse uma lei proibindo a existência de restaurantes em São Paulo. “Foi por isso que aconteceu a Revolução Francesa?! Os franceses foram proibidos de ir a restaurantes?!” Marie soa como um livro de Saramago. Penso em uma França sem bistrôs, a revolta dos comensais, a falência dos agricultores, a escassez de trabalhadores nas cidades por falta de onde comer, a fome, o pânico, a barbárie. Fogueiras nos Jardins du Luxemburg onde franceses selvagens lutam por um pedaço de foie gras.

Reza a lenda que em 1765, perto do Louvre, uma espécie de boticário não ortoxo abriu um estabelecimento com a placa Venite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo ou: “Vinde a mim os que têm estômago e restaurá-los-ei.”. Lá, Monsieur Boulanger vendia bouillons restaurants, “caldos restauradores” em francês. Eram sopas líquidas com carnes, aves e legumes, que prometiam máxima concentração de nutrientes com mínimo esforço de digestão. Seu target era indivíduos sensíveis: anciãos, crianças, doentes, convalescentes.

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Taverna x SPA urbano

Acabou atraindo outra sorte de sensíveis: artistas e fidalgos delicados demais para comer gordas patas de javali com as mãos ou beber vinho barato aos cântaros, em mesas coletivas, partilhando o prato com sósias do Sherek. Se a taverna fosse um tipo de bandejão grotesco, o restaurant era um misto de SPA urbano com leve apelo GLBT. Très français!

Com o sucesso, Boulanger é seguido por muitos e Restaurant torna-se sinônimo de um novo segmento que, após briga judicial, ganha o direito de vender quaisquer pratos. Aos poucos, passa a atrair clientes mais pela oferta de uma experiência individualista, moderna, burguesa, artística, esclarecida, com vistas à fruição do gosto – do que pelo apelo dietético. O restaurante personifica o rompimento com a sociedade medieval; é o templo da civilização iluminista.

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Coloco Vatel no DVD, filme baseado em fatos reais, que retrata os conflitos de Vatel, o chef do castelo de Chantilly, frente à decadente opulência absolutista, na semana em que recebe a visita do rei. Sigo a sessão com Maria Antonieta e Festa de Babette. Marie finalmente pode imaginar a França pré-restaurant, o Período do Terror, e o frisson quando os ex-cozinheiros da corte puderam regressar a Paris e criar restaurantes nos termos que conhecemos hoje.

Origem do termo snob

Explico que o termo snob vem da Era Napoleônica, quando os burgueses passaram a frequentar escolas com os antigos nobres e seus materiais eram marcados com as primeiras letras da expressão Sin Nobilis, “sem nobreza” em latim. Sentiam estigmatizados e queriam mostrar que não eram inferiores aos nobres. Assim, esforçavam-se por ser parecer – e comer! – como os nobres. Perderiam a oportunidade de se deliciar com as caras comidas feitas pelos chefs que antes eram servos dos seus colegas nobres empobrecidos?

Penso na neoburguesia paulistana e seu recente gosto pelo mundo gourmet. Pergunto-me se um subterfúgio do século XIX ainda seria utilizado, mesmo que de forma inconsciente, para reduzir sentimentos de inferioridade sem sentido… “Rosa, faz um sanduíche de mortadela pra mim?”. Claro, Marie. Como você quer? “Quente, au bleu, com pistache e um toque de mostarda de Dijon.”

Rosa Fonseca – experiente chef de cozinha com diversas especializações em gastronomia.