Rio 40 graus: o início do fim

por Roberto Goldkorn

Rio 40 graus, chapa quente, parecia a brincadeira de "polícia e ladrão" que gostava de fazer com meus amigos no velho Rio. Não, não parecia. Mas naquele velho Rio dos anos 60 tão pacífico, já havia o ovo da serpente germinando à sombra da nossa irresponsabilidade.

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Muito antes o chefe de polícia alertava para o crescimento desordenado das favelas, que poderiam se tornar foco de criminalidade. Alguém ouviu? Isso foi em 1900!

O tecido apodrecido das favelas não gera a criminalidade, gera a miséria que produz mais misérias alimentando uma espiral que pode dar a luz à criminalidade. Por que isso não acontece nas imensas favelas da India? Cultura, amigos, cultura. A India tem cinco mil anos ou mais de cultura espiritualizante, a cultura do sacrifício, da renúncia aos prazeres mundanos em prol de uma vida espiritual benfazeja. Nós não. A nossa cultura é a aspiração ao tênis Nike.

A arquiterura caótica, gerando lixo, deterioração, promiscuidade, ausência do estado como se vê no "asfalto" obrigatoriamente vai perpetuar a miséria.

Quem mora na favela é filho e neto de favelado. Mas nem todo mundo vê aquela realidade como infernal, alguns a veem como oportunidade de sair dela, sem sair dela. Sempre tem alguém com DNA de tirano.

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Todo espaço deve ser ocupado, se o estado não ocupa, alguém vai fazê-lo.

Essa reflexão começou ironicamente na Europa, mas sua aplicação é universal.

Estive recentemente na cidade de Nápoles na Itália. Fiquei apenas cinco dias, mas o suficiente para perceber que estava diante de uma cidade decadente, deteriorada, onde o poder público há muito já desistiu de colocar ordem na casa.

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O trânsito sem regras, caótico, as ruas sujas, cheias de lixo acumulado, os prédios muitos deles, seculares, simplesmente apodrecendo. Lembrou-me tristemente alguns lugares do Rio de Janeiro e de certos bairros nova-iorquinos da década de setenta e oitenta antes do prefeito Giuliani ter imposto o “tolerância zero”.

De repente, me veio a mente uma tenebrosa correlação: Nápoles é a cidade sede da Camorra, a comunidade do crime organizado mais poderosa e populosa da Europa (leiam o livro Gomorra do Roberto Saviano imperdível). Estou convencido de que há sim uma relação direta entre o meio devastado, desorganizado e a anomia social, e consequentemente o crime, a violência e a deterioração das condições de vida da população.

Num ambiente “doente” só prosperam os predadores, os comandos, e pccs, e milícias, o resto chora e sobrevive. Não é só por causa de uma tática que os bandidos atiram nas luzes da favela quando a policia se aproxima. A luz simboliza a verdade, a lucidez, a clareza, aspectos do comportamento humano que estão na contramão do crime, da opressão e da prepotência armada ilegal.

Pelo menos metade dos problemas de segurança pública seriam automaticamente resolvidos se os governos investissem na ordem, na limpeza, no transporte, na iluminação e nos serviços para a população. O crime epidêmico não viceja na casa arrumada. Claro que sempre existirão os psicopatas, que mantêm a filha presa por anos num porão para a violentarem. Isso é parte da sombria natureza humana. Mas o crime do tipo organizado, que se torna um poder dentro do estado, deixando os cidadãos vulneráreis a sua violência injusta, esse teria muita dificuldade de prosperar.

O mesmo acontece nas nossas casas. Mesmo que eu não soubesse da existência do crime organizado na cidade italiana, iria deduzir que alguma coisa errada estaria acontecendo ali – é a assinatura do ambiente que nos permite ler a história de quem está assinando.

Quando nos permitimos viver em ambientes sufocantes, sujeitos às doenças ambientais por muito tempo os estragos são inevitáveis. Há poucos dias estive num apartamento que reúne um grande número de problemas mais ou menos graves diagnosticados pelo Feng Shui que pratico. A família estava lá há muitos anos, bem mais do que seria suportável sem sequelas. Todos sem exceção estavam doentes. Das doenças psíquicas às doenças físicas e travando uma luta perdida contra a doença financeira. Acontece na nossa casa, no escritório e nas cidades.

Soube de uma história que ilustra bem o que desejo mostrar. Numa cidadezinha, a prefeitura fez um lindo jardim cheio de flores coloridas, iluminado e com bancos para as pessoas sentarem e conviverem com a beleza das flores. Uma gangue se incomodou com aquilo, e à noite pisoteou e arrancou as flores, e atirou nas lâmpadas. A beleza incomoda aqueles que são doentes sociais, a ordem os ofende, a limpeza lhes causa arrepios. Mas essa é uma luta que se dela desistirmos perderemos tudo, da liberdade, à dignidade e a vida, como todos os dias os jornais brasileiros e italianos nos contam. Quantos jardins pisotearem, tantos e mais até devemos formar, e é claro nunca esquecer de punir primeiro e tentar reeducar depois os inimigos da vida.