Percepção da realidade e do mundo é ilusória; saiba por quê

por Monica Aiub

“O mundo é a minha representação – Esta proposição é uma verdade para todo o ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que veem este sol, mãos que tocam esta terra; numa palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem” (Schopenhauer).

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Assim Schopenhauer inicia o livro O mundo como vontade e representação, um dos trabalhos que servem como fundamento para os princípios da filosofia clínica. De que maneira o conceito de representação, proposto por Schopenhauer, pode ser utilizado para nos auxiliar a lidar com as questões cotidianas?

Em primeiro lugar é preciso discernir entre diferentes conceitos de representação expressos na citada obra. No livro I ele apresenta um primeiro ponto de vista: A representação submetida ao princípio da razão suficiente: o objeto da experiência e da ciência. Segundo esse conceito, tudo o que existe, existe para o pensamento, existe em relação a um sujeito que conhece. Desta forma, cada representação é única, singular a cada sujeito que conhece, e não há como dois sujeitos terem uma mesma representação.

Maya: véu da ilusão

“É Maya, é o véu da ilusão, que, ao cobrir os olhos dos mortais, lhes faz ver um mundo que não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho, à radiação do sol sobre a areia, onde, de longe, o viajante crê aperceber uma toalha de água, ou ainda a uma corda atirada por terra, que ele toma por uma serpente.” (Schopenhauer citando trechos dos *Vedas e dos Puranas).

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Ao mesmo tempo em que se inspira na perspectiva kantiana que questiona os limites da razão – mostrando que só nos é possível conhecer a partir das formas a priori de nosso entendimento –, ele modifica essa leitura, transformando o sujeito kantiano – universal e necessário – num sujeito empírico, que possui uma historicidade que o situa no mundo, e a partir da qual compreende o mundo. É o sujeito que conhece todo o resto, sem ser ele mesmo conhecido.

Você já reparou como pessoas diferentes, diante de uma mesma situação, podem enxergar ou destacar aspectos totalmente distintos? Já ocorreu de você compreender um fato, uma ideia, uma afirmação de maneira totalmente distinta de alguém que presenciou o mesmo fato, ideia ou afirmação juntamente com você? Essas diferentes leituras, feitas por diferentes sujeitos, exemplificam o conceito de representação submetida ao princípio da razão suficiente de Schopenhauer.

Quando afirmamos que, em filosofia clínica, o que interessa é conhecer a representação da pessoa, isso significa tentar conhecer a forma como essa pessoa representa o mundo. Obviamente, se afirmássemos que o filósofo clínico consegue atingir um conhecimento pleno, total, dessa forma de representar o mundo, estaríamos entrando em contradição, ou atribuindo a esse profissional um poder superior ao de outros seres humanos. É claro que não se trata disso. Trata-se, todavia, de construir uma representação do filósofo clínico acerca da representação do partilhante – paciente.

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Uma vez que não é possível, a duas pessoas, possuírem a mesma representação – pois esta somente existe para o sujeito que conhece, em sua singularidade –, o conhecimento, em clínica, da representação do partilhante, se dá por aproximação. Assim sendo, não cabe ao filósofo clínico julgar, adivinhar, atribuir significados ou interpretar. Cabe-lhe ater-se ao que lhe é possível conhecer: o fenômeno, o que se mostra, as descrições feitas pelo partilhante. Com isso é possível ter acesso ao que realmente acontece com a pessoa? Ao mundo no qual esta se encontra inserida? Não. Apenas à sua representação.

Desta forma, se o partilhante apresenta uma possibilidade para conduzir sua vida que é totalmente desconhecida ao filósofo clínico, não cabe a ele avaliá-la como impossível, impraticável, mas sim pesquisar as formas de efetivação existentes no contexto do partilhante, ou conhecidas, pensadas ou criadas por ele. Cabe também questionar o partilhante sobre as possíveis consequências das possibilidades apresentadas, considerando, principalmente, aquilo que lhe é caro – e que foi pesquisado anteriormente, a partir dos dados coletados durante o procedimento de colheita da historicidade (clique aqui).

Sob um outro olhar

Se trouxéssemos isso para a vida cotidiana, fora do consultório, talvez discutíssemos menos, brigássemos menos e compreendêssemos mais. Se pudéssemos considerar que cada pessoa vê o mundo de uma maneira própria e, ao invés de tentarmos afirmar nossa forma de representá-lo, tentássemos compreender as diferentes formas como legítimas, talvez conseguíssemos ampliar nossos horizontes, aprendendo novas possibilidades de ver o mundo e de lidar com os problemas.

Essa postura significaria dizer que não existe realidade? Que tudo o que existe é ilusão? Ou ainda, poderia significar assumir uma postura relativista diante da vida e com isso defender um “vale-tudo” no campo da ética?

Apontar os limites da razão e da representação submetida ao princípio da razão suficiente não significa defender um relativismo, muito menos negar a realidade. Significa apenas apontar para os limites do conhecer e, consequentemente, para a impossibilidade de apreensão da totalidade na representação subordinada ao princípio da razão.

Contudo, no terceiro livro, Schopenhauer nos apresenta um segundo ponto de vista sobre a representação: A representação, considerada independentemente do princípio de razão. A ideia platônica: o objeto da arte.

Representação

“Depois de, no primeiro livro, ter estudado o mundo como simples representação, de objeto para um sujeito, nós consideramo-lo, no segundo livro, sob um outro aspecto: descobrimos que esse ponto de vista é o da vontade; ora, a vontade manifesta-se unicamente como aquilo que constitui o mundo, abstraindo da representação; foi então que, segundo esta noção, demos ao mundo, considerado como representação, o seguinte nome, que corresponde tanto ao seu conjunto como às suas partes: a objetivação da vontade, que significa, a vontade tornada objeto, isto é, representação”.

Na acepção de representação independentemente do princípio de razão, Schopenhauer aponta para a totalidade, para o uno, para a possibilidade de formas de conhecimento integrais, que só podem ser atingidas quando nos libertamos do princípio de razão. Ele cita a inspiração do artista, a criação do gênio, as conexões do louco e a postura ascética do santo. Isto é, formas de nos desprendermos daquilo que somos, de nossas representações científico-racionais, e nos permitirmos um contato com o absoluto, com o inefável, com a totalidade.

Não está em questão o uso clínico de tal possibilidade, pois exigiria do profissional tornar-se um asceta, um santo, ou depender de uma inspiração que não se dá com hora marcada. Assim sendo, o conceito de representação, de Schopenhauer, utilizado na filosofia clínica refere-se ao descrito no livro I de O mundo como vontade e representação.

Apenas como acréscimo, é importante ressaltar que o conceito de representação independentemente do princípio de razão permite conceber outras formas de conhecimento além da razão, que serão exploradas pelo perspectivismo nietzschiano como conhecimento estético (clique aqui). Ainda que o filósofo clínico não faça uso deste segundo conceito de representação, sua derivação no conceito de conhecimento estético apresenta-se na clínica filosófica em diferentes tópicos e **submodos que fazem uso de um conhecer por sensações.

*Vedas: livros sagrados da Índia

**Submodos: Formas, modos que utilizamos para lidar com nossas situações