A prática clínica na psicanálise

por Luiz Alberto Py

"Quem sabe faz, quem não sabe ensina." Este dito cruel era freqüente entre os alunos da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (atual UFRJ), localizada na Praia Vermelha, na época em que lá estudei. Na irreverência da juventude nos apegávamos a fórmulas que nos protegessem de idealizar excessivamente nossos mestres.

Continua após publicidade

A vida me mostrou a correção desta idéia na medicina. Penso que também na maioria das atividades e profissões provavelmente existe uma dicotomia entre os teóricos, que se abrigam em suas torres de marfim cercados de milhares de livros, e os práticos, que metem a mão na massa e enfrentam o desafio diário de tentar corresponder às necessidades dos que os procuram. Como diz Chico Buarque há os que nasceram para enfrentar o mar e os que se sentem mais confortáveis confinados em seus faróis correndo menos riscos. Ambos são úteis e importantes. Triste é quando uns e outros, geralmente por insegurança, passam a se desmerecerem reciprocamente.

Freud envelhecido

Na área do conhecimento onde atuo – a psicanálise – por vezes surgem polêmicas em torno da maior ou menor relevância de tais e quais idéias, escolas, correntes, etc. A figura de Sigmund Freud, o criador da psicanálise costuma surgir como eixo destes debates. Como todo psicanalista, devo a Freud a invenção de minha profissão. Todavia, isto não me obriga a aceitar todas as suas formulações e a ficar submisso às afirmações oriundas dele. Afinal, ele morreu antes de eu nascer, e já passei há muito tempo dos 60 anos de vida. O otimismo nos obriga a imaginar que nos últimos sessenta anos centenas de pensadores geniais acrescentaram à psicanálise tantas inovações que o estudo das formulações freudianas ficou envelhecido.

Certa vez, durante uma palestra, me vi contestado por um jovem colega que afirmava que as reflexões que eu expunha estavam em desacordo com as idéias de Freud. Ocorreu-me dizer a ele que, da mesma maneira em que nas fábricas de aviões os engenheiros certamente pouco se importavam em concordar ou não com Santos Dumont ou com os irmãos Wright, eu, depois de cem anos do começo da psicanálise, não estava muito preocupado se os pensamentos de Freud se alinhavam com minhas observações clínicas.

Continua após publicidade

Acrescentei que era muito possível que em alguma sala da Boing existissem fotografias dos irmãos Wright, já que os mesmos são considerados os pioneiros da aviação pelos americanos. Da mesma forma, em uma parede de meu consultório existe um belo desenho do rosto de Freud, o que não significa que minha reverência à sua genialidade me impeça de discordar de algumas de suas afirmações. Lembrei-me também de que em uma discussão com seu discípulo W. Stekel, Freud irritado chamou-o de “pigmeu”. Ao que ele retrucou que um anão sentado nos ombros de um gigante pode enxergar mais longe do que o mestre.

Quando estava estudando para ser psicanalista me afligia a quantidade de tempo que era dedicada a rever idéias que em nada me ajudavam na hora em que me encontrava com meus clientes no consultório. Foi acalentador ouvir falar de autores como Wilfred Bion e Emilio Rodrigué que se dispuseram a estudar o funcionamento mental do analista, em vez de se deter no lugar comum de esmiuçar apenas a mente do analisando. Constatei na prática a imensa utilidade de aprender a fazer minha cabeça trabalhar de forma a ser mais eficiente em minha tarefa, em vez de ficar teorizando incessantemente sobre as vicissitudes emocionais de meus clientes.

Depois, aos poucos, fui aprendendo que muito mais importante do que conhecer as neuroses de meus clientes era ajudá-los a aprender como administrá-las, neutralizá-las e com elas conviver. Em vez de me deter discutindo minúcias do pensamento de um gênio falecido há tanto tempo, prefiro tentar aplicar e desenvolver outras formas de ajudar as pessoas que me procuram e que em mim confiam.

Continua após publicidade

Estou sempre em busca de novos instrumentos para melhor exercer meu trabalho e não tenho nenhum interesse em privilegiar uma teoria sobre outra, quero usá-las todas para minha atividade diária. Esta forma de encarar meu ofício tem me levado a investigar as mais diversas formas de abordagem dos problemas mentais e emocionais das pessoas na busca de ampliar as ferramentas de que disponho para melhor exercer minha profissão.

Como conseqüência, freqüentemente tenho sido levado a discordar de atitudes tradicionalistas de colegas apegados à maneira de trabalhar que aprenderam e que continuam a praticar, sem se disporem a ampliar seus conhecimentos. É triste constatar que a psicanálise se dividiu em escolas, correntes, igrejinhas, cada uma delas se proclamando a única, a verdadeira, a melhor e desvalorizando os que não a segue.

 

A prática clínica na psicanálise

por Luiz Alberto Py

Como venho narrando aqui neste espaço, minha experiência profissional progrediu na medida em que aos poucos, fui desenvolvendo e trabalhando uma visão crítica de todo o arcabouço teórico que me havia sido ensinado. Aprendi muito com meus próprios analistas, que me diziam: “Seja você. Procure o seu jeito de ser, sua forma de trabalhar, procure por onde você é mais produtivo, criativo, procure seu lado bom.” E me dei essa liberdade de investigar em vez de ficar preso a simplesmente repetir o que eu havia até então absorvido. E também me poupei de imitar o meu psicanalista o que era uma moda na época que fiz formação. Bastava conversar meia hora, às vezes dez minutos, com uma pessoa e já se sabia quem era o analista dela. Quase todos eram uma imitação – ridícula, às vezes – do seu próprio analista. Alguns analistas fumavam cachimbo, e diversos analisandos fumavam cachimbo do mesmo jeito que seu analista. E por aí afora…

Continua após publicidade

Ao longo do tempo, percebi que eu estava ficando muito diferente daquilo que tinha aprendido na Sociedade de Psicanálise. Lembro-me de dois incidentes. Um deles, foi o dia que um cliente meu saiu do meu consultório e eu fiquei olhando ele saindo e pensando: “Pôxa! Esta sessão foi legal. A gente viu coisas interessantes, a gente aprendeu coisas sobre ele, mas não tinha nada a ver com a psicanálise que me ensinaram. Eu estou fazendo uma outra coisa aqui.”

E outra vez, foi quando uma cliente minha, que tinha vindo de outro analista, ao final de uma sessão se levantou risonha e disse: “Ah! Eu gosto tanto de vir aqui porque o meu outro analista só ficava falando dos meus defeitos, e eu saia de lá deprimida. E você fala das minhas qualidades, eu saio daqui contente.” Fiquei me perguntando: “Será que isso é bom? Ela está contente, mas será que isso está fazendo bem a ela?” Estava sempre a me interrogar essas coisas e observava para ver se estava fazendo mesmo bem a ela, ou não. E pensava: “Por que eu estou fazendo isso? Por que eu estou seguindo esse caminho? O que quer dizer isso?”

Foi uma época de muita indagação sobre o meu processo, eu fui fazer análise de novo por conta disso, balancei, tive muitas dúvidas.

Psicanálise e medo

Continua após publicidade

Mas sempre me lembrava do que eu tinha ouvido de *Bion, em sua primeira palestra em São Paulo, na primeira vez que ele veio ao Brasil (a reprodução está no livro “Conferências brasileiras – número um”, editado pela Imago). Em determinado momento, ele disse: “Em todo consultório deve haver duas pessoas bastante assustadas; o paciente e seu psicanalista. Se eles não estiverem, ficamos a nos perguntar porque eles estão se importando em descobrir o que todo mundo sabe?” Ele propunha fazer uma sessão de análise pra saber o que a gente ainda não sabe, e não para repetir o que já sabe.” Esta era minha referência; procurar o que eu e o meu cliente ainda não sabíamos.

A meu ver, nós, psicanalistas, estávamos nessa época – e acho que até hoje – investigando um terreno extremamente vasto, obscuro, confuso, e angustiante. Assustador (frightening), como dizia Bion. Você tem duas pessoas com medo dentro do consultório: o analista e o cliente. Devem estar com medo, porque lidam com coisas que não sabem. E coisas assustadoras mesmo: o fundo da alma humana. E o que vem lá de dentro? Nós sabemos que o homem é um animal feroz. Então, o que dois seres ferozes estão fazendo trancados dentro de uma sala? Há um elemento assustador nisso que não se pode ignorar. Só podemos desconsiderar essa questão quando estamos trabalhando muito superficialmente: “Ah, você sonhou com isso? Isso quer dizer aquilo, você está querendo matar o seu pai, matar a sua mãe, ou transar com outro, ou vice-versa.” Não estou desmerecendo Freud, afinal ele inventou minha profissão… E, falando sério, reconheço sua genialidade, a questão edipiana é uma percepção maravilhosa e muito verdadeira. Porém é apenas um pequeno pedaço em relação a todo o conteúdo da alma humana.

Com mais um texto, onde vou falar da outra mudança crucial em minha forma de trabalhar terminarei esta série de artigos que já se alonga por meses. Depois voltarei a insistir no tema que a meu ver é o mais fundamental para o processo psicoterapêutico – a auto-estima.

Continua após publicidade

*Bion: psicanalista britânico