Um sintoma é um “estado mental”?

por Monica Aiub

No artigo anterior (Afinal, o que é um diagnóstico?clique aqui e leia), afirmei que no relato de um paciente a seu médico, “um conjunto de sintomas se delineia. Tal conjunto é constituído por descrições em primeira pessoa, acessíveis somente ao paciente, que relatará ao médico seus ‘estados mentais’: crenças, desejos, ilusões, dores, sentimentos, pensamentos, sonhos, etc.”. Alguns leitores, entre eles alguns médicos, questionaram: por que o paciente, ao relatar suas dores, relata seus “estados mentais” e não “estados físicos”, uma vez que descreve sensações físicas? Outros leitores, perguntaram: o que é um “estado mental”?

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Prosseguindo, em diálogo com os leitores, cito Mario López, em O processo diagnóstico nas decisões clínicas, que aponta como deficiências na aplicação da tecnologia médica ao processo diagnóstico, as falhas e os obstáculos à individualização do diagnóstico. As falhas ocorrem, segundo o autor, por se priorizar o diagnóstico da doença ao invés do diagnóstico do paciente, ou seja, é preciso uma avaliação integral, que considere as particularidades biológicas, psicológicas e sociais do paciente.

Os obstáculos encontram-se, segundo López, em concepções filosóficas e na padronização da conduta médica. Entre os elementos relacionados à padronização, ele destaca: “desconhecer o fato de que dois pacientes não são precisamente equiparáveis, inclusive quando estão com processos patológicos semelhantes, ou seus exames complementares revelam resultados idênticos”; “estimular o cientismo” e “ignorar que grande parte do conhecimento científico aplicado em medicina é de natureza indutiva e baseado na análise estatística de dados obtidos a partir de pesquisas clínica” (p. 13-14).

No que se refere aos obstáculos advindos de concepções filosóficas, o autor cita a “dicotomia mente-corpo”. Afirma López: “Esse dualismo cartesiano tem exercido notável influência no exercício da medicina ao criar o modelo biomédico, alicerce conceitual da moderna medicina científica. (…) A divisão entre distúrbios físicos e mentais é artificial e anacrônica, pois uma literatura convincente demonstra que existe muito de mental nos distúrbios físicos e muito de físico nos distúrbios mentais.” (p. 12).

Conforme já descrito no artigo Filosofia reflete sobre a interferência da mente no físico (clique aqui e leia), Descartes (1641) formulou o problema mente-corpo ao afirmar que somos constituídos por duas diferentes substâncias: a res cogitans, o corpo, material, divisível, que ocupa lugar no espaço; e a res extensa, a mente, imaterial, indivisível, que não ocupa lugar no espaço. Segunda a teoria cartesiana, ambas as substâncias interagem causalmente através da glândula pineal localizada no nosso cérebro. Apesar de estabelecer o local onde a interação causal entre as substâncias ocorre, Descartes não explicou como é possível uma substância imaterial agir causalmente sobre a matéria, nem como a matéria poderia atuar sobre o imaterial. Daí a formulação do problema mente-corpo.

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Como uma primeira derivação do problema mente-corpo, encontramos a divisão que atribui à medicina o papel de cuidar do corpo, e à religião ou à filosofia o papel de cuidar do mental. Se o corpo é matéria, os critérios para estudá-lo devem ser os mesmos das ciências naturais. Assim sendo, são considerados estados físicos aqueles que podem ser pesquisados e explicados pelos métodos das ciências naturais; e estados mentais aqueles que não podem ser pesquisados e explicados por tais métodos.

Segundo Heil (1998), o físico é espacial, extenso, público; enquanto o mental é não espacial, sem extensão e privado. Segundo Feigl (1967), o mental é subjetivo, qualitativo, intencional, não situado espacialmente e não ocupa lugar no espaço, não é explicável por processos físicos e é incapaz de atuar causalmente sobre o físico; o físico é objetivo, quantitativo, não intencional, espacialmente situado e ocupando lugar no espaço, causalmente explicável mediante o recurso à microfísica, atua de maneira causal e como sistema está causalmente fechado. Abordando os estados mentais e os estados físicos no século XX, os autores permanecem, ainda, na concepção cartesiana.

Os métodos utilizados pelas ciências naturais, adequados ao estudo dos “estados físicos”, exigem a possibilidade de mensuração, de descrições em terceira pessoa, ou seja, objetivas, que permitam a qualquer pessoa reproduzir o mesmo fenômeno e encontrar o mesmo resultado. Os sintomas relatados pelo paciente, em grande parte dos casos, não podem ser observados, mensurados, antes da elaboração do diagnóstico sindrômico que levará à solicitação dos exames para um diagnóstico anatômico (ver a descrição dos tipos de diagnósticos no artigo anterior).

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Segundo Bunge (2010), um diagnóstico médico supõe a abordagem de um problema inverso. Um problema inverso ou regressivo, segundo ele, “é aquele cuja pesquisa sobe a sequência lógica ou corrente de eventos, isto é, da conclusão para a(s) premissa(s), ou do efeito até a(s) causa(s).” (p. 220). Afirma Bunge, ainda, sobre medicina: “Alguns poucos problemas de diagnósticos médicos são diretos. Fratura exposta de ossos é um deles: nesse caso, não há necessidade de supor mecanismos invisíveis para explicar a causa da ruptura de tecidos, do sangramento e da dor. Entretanto, todos os problemas de diagnóstico em medicina interna são do tipo inverso.” (p. 246).

Ao utilizar as ferramentas diagnósticas que possuímos hoje (diagnóstico anatômico), o médico transforma, segundo a análise de Bunge, o problema inverso original em um ou mais problemas diretos. Ele exemplifica citando um paciente que procura o médico com a queixa de fadiga, mesmo com alimentação e descanso adequados. Afirma ele: “o médico pode suspeitar de anemia e ordenar uma contagem de leucócitos, a fim de verificar sua hipótese. Porém, um olhar sobre a história de família do paciente pode sugerir diabetes, caso em que o médico ordenará uma medição do nível de açúcar, entre outros exames.” (p. 247).

Em outras palavras, o problema indireto, na medicina, consiste em partir do sintoma para a síndrome, o que supõe uma leitura do relato do paciente a partir do conhecimento que o médico possui acerca das síndromes. Neste sentido, retornamos a López, que apresenta os sintomas relatados pelo paciente como elementos reais; e a interpretação do médico, levantando a hipótese de uma síndrome, como elementos subjetivos do diagnóstico (p. 19).

Por outro lado, não é possível mensurar as dores, as sensações descritas pelo paciente. Embora tenhamos vários testes que tentam estabelecer o tipo de dor, a gravidade do caso, a necessidade ou não de um acompanhamento psicológico e, em muitos casos, o tipo de tratamento mais adequado ao caso (vários desses testes são descritos em Figueiró, 2004); tais testes interpretam as descrições, mas não necessariamente as significam a partir de seus contextos, podendo levar a interpretações equivocadas, que se tornarão um obstáculo ao diagnóstico adequado ao caso.

Assim sendo, quando me referi a sintomas como “estados mentais” descritos pelo paciente, que servem de base para a elaboração das hipóteses diagnósticas, referi-me a descrições de dores, sensações, percepções que não podem ser descritas em linguagem de terceira pessoa, que não podem ser medidas objetivamente, através dos métodos utilizados para mensurar os dados em ciências naturais. Referi-me, ainda, a uma linguagem que, para ser compreendida, talvez precise ser contextualizada nas circunstâncias do paciente, tais como aspectos culturais, familiares, psicológicos, etc.

Diante de tais observações, destaco a importância de descrevermos nossos sintomas ao médico com o máximo de detalhes possível, incluindo aspectos de nossas circunstâncias que, muitas vezes, para nós, são óbvios, mas que podem ser desconsiderados pelo médico simplesmente por não fazerem parte dos elementos presentes em seus próprios contextos.

Em outras palavras, nossa história interessa, e muito, àquele que cuida de nossa saúde, uma vez que nosso modo de ser, nossas verdades, nossa linguagem constituem-se a partir de nossa história, de nosso vivido.

Às vezes, por considerarmos pouco importantes, desinteressantes, ou simplesmente óbvios, não descrevemos os detalhes de nossa história ao médico e, com isso, não oferecemos a ele os dados necessários para um diagnóstico mais preciso.

Referência Bibliográficas:

BUNGE, M. Caçando a realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FEIGL, H. The “Mental” and the “Phisical”: The essay and a postscript. Minneapolis: University of Minnessota Press, 1967.
FIGUEIRÓ, J. (org). Dor e saúde mental. São Paulo: Ateneu, 2004.
HEIL, J. Philosophy of mind: A contemporany introduction. Longres: Routledge, 1998.
LÓPEZ, M. O processo diagnóstico nas decisões clínicas. Rio de Janeiro: Revinter, 2001.
TEIXEIRA, J. Como ler a filosofia da mente. São Paulo: Paulus, 2010.