A Fantástica Fábrica de Chocolates Virtuais

por Andrea Jotta – psicóloga componente do NPPI

Charlie e a Fantástica Fábrica de Chocolate O que os sites de relacionamento podem ter em comum com a Fantástica Fábrica de Chocolate? Se pensarmos linearmente como estamos acostumados, nada. Mas, tentem pensar paralelamente. Juntem ao pensamento linear – aquele que tem ‘começo, meio e fim’ – a possibilidade de um pensamento mais contemporâneo no qual não existe começo, meio e fim.

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Onde tudo existe e coexiste em paralelo, e onde não é necessário acabar uma coisa para que outra comece. Onde podemos pensar em vários assuntos ao mesmo tempo ou onde as fantasias, o simbólico e o onírico possam coexistir com o linear. Fazendo isso sem dramas, ameaças ou sem que a sociedade nos rotule (ou nos interne…) por tais pensamentos ou fantasias.

Pois bem, se você conseguiu entender o que eu disse, parabéns! Agora já sabe como funciona nosso pensamento mais íntimo, subjetivo. Como fluem nossas ideias, que muitas vezes são só nossas, pois pertencem ao mundo interno, e nem sempre queremos ou precisamos dividi-las com alguém. É nesse mundo, onde subsiste a maioria dos nossos pensamentos que se baseiam nossos atos. Este é o espaço dos impulsos, das vontades, das nossas fantasias e desejos, além de muitos outros pensamentos paralelos. E tem parecido ser esse também o mundo e a maneira de ser (a “identidade”) que algumas pessoas escolhem expor mais livremente na internet.

Nesse universo, com menos regras, mais espontâneo e instantâneo, teremos então a possibilidade da existência do paralelo entre os sites de relacionamento e namoro, e o filme contemporâneo *Charlie e a Fantástica Fábrica de Chocolate. Pode parecer loucura, mas quem define o que é loucura em tempos contemporâneos? A empresa que produz e ganha milhões com os remédios para “curar” ou “controlar” essa loucura? Você ainda está nessa? Então, ainda está pensando linearmente… Esqueça, pois a internet não é linear e exclusiva. Ela é paralela e inclusiva, como os textos em hiperlink, ou as várias janelinhas abertas nas conversas dos comunicadores instantâneos como o MSN. O uso que damos a ela pode até ser linear, mas pode também conter seu uso paralelo. Vários computadores possuem hoje “duo core”, ou seja, dois cérebros ou dois corações, recurso que possibilita ao micro trabalhar e “pensar” em paralelo, e ainda mais rápido.

Vamos tentar de novo, quem sabe você se lembre do filme? Ele começa com uma cidade com prédios cinzas, lineares, ruas brancas pela neve e sem graça. Os habitantes dessa cidade tinham seus papéis e repetiam suas “funções” sem muito entusiasmo, vontade ou paciência, ano após ano. As possibilidades de mudanças desses papéis, de seus trabalhos e funções eram restritas; havia pouco espaço para o colorido, o divertido e o criativo. Isso acabava sempre em segundo plano, renegado pelas tarefas e necessidades cotidianas, como trabalhar, comer e dormir.

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Nessa cidade vive Charlie, que como o próprio filme diz, era um menino que não tinha nada de excepcional. Não corria mais que os outros, não era o mais alto, nem o mais inteligente de todos. Mas nessa cidade linear, de prédios cinza e ruas brancas, existia uma fábrica: a maior Fábrica de Chocolates do Mundo. Essa fábrica funciona em paralelo à cidade, num espaço enorme e só seu. A cidade só tem conhecimento de seu funcionamento por conta da fumaça que sai das suas chaminés e dos caminhões vermelhos, que de tempos em tempos, saem por seus portões. Na cidade subsiste o mistério, ninguém sabe o que tem lá dentro. Desde que os portões foram fechados por conta do roubo de seus segredos, ninguém nunca mais entrou ou saiu de lá.

Bom, vejamos: uma cidade cinza e linear, uma vida cotidiana cinza e linear onde pouco se usa o espontâneo e o criativo. E em paralelo uma fábrica de chocolate da qual pouco sabemos sobre o que possui dentro de seus portões, mas conhecemos um pouco de suas várias possibilidades. De tempos em tempos, assim como a fábrica, a internet ou mais especificamente os sites de relacionamento e namoro mandam convites, seja por e-mail, por uma noticia da mídia, ou por amigos que já fizeram uso, pra que visitemos seu interior, instala-se então uma curiosidade.

No filme, cinco crianças são escolhidas para tal aventura, como alguns de nós, crianças internéticas que ainda somos, resolvemos aceitar tais convites. E, quando criamos um perfil em algum site de relacionamento ou namoro, abrem-se os Portões da Fantástica Fábrica de Chocolate!

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Do mundo linear, cinza e branco, passamos a um mundo coloridíssimo, onde desde a grama até as arvores, o rio e tudo mais é doce, chamativo e comestível. A reação é de surpresa, espanto e deslumbramento, que contagia as crianças quando lhes é dada a ordem de ir e se divertir: todos correm e cada um faz seu primeiro uso desse mundo onde tudo pode, onde tudo é colorido, atrativo e comestível.

É então que a primeira criança se perde. O guloso que quer comer tudo, se lambuza de chocolate, arranca a grama, come desesperadamente, sem regras internas ou controle, não consegue saciedade com nada que experimenta, imaturo e sem limites, é tão ignorante sobre o que prefere, quer ou precisa, que passa a querer tudo e a tentar consumir tudo. A volúpia aparece naqueles que, de tanto estímulo, já nem sentem mais o sabor ou a diferenciação entre o que lhes é bom ou ruim. Agem como se fosse possível comer a fábrica inteira. Como alguém desconectado de si, apesar de avisado, acaba caindo no rio e sendo tragado por um aspirador. Entalado no cano assiste ao espetáculo dos Ompa Lumpas, que o chamam de Augustos Gump, o grande porcalhão.

Sites de relacionamento e compulsão

Aos que entram em sites de namoro e não prestam atenção em suas buscas, preferindo a quantidade a olhar para si, suas necessidades e desejos, para que dessa busca aleatória resulte algo satisfatório, fica o cuidado: a gula expressa nesse uso pode deixá-lo (a) mais decepcionado ainda consigo e com a vida, além de várias dores de barriga ou de cabeça.

Continuando a viagem, as crianças embarcam em uma viagem que ninguém, nem o próprio Willy Wonka, sabe aonde vai dar: é uma viagem cheia de sobe e desce, como uma montanha russa que dá frio na barriga até de quem está assistindo. Mas ao final, essa viagem acaba na sala das invenções. Para quem está viajando pelos sites de relacionamento, essa é à hora do espanto, do buraco da fechadura, do infinito particular de cada um, onde os mais diversos mundos de brincadeiras e experimentos podem ser encontrados.

Desde sexo bizarro a multisexo (seja lá o que isso signifique), sexo a três a quatro ou a duzentos, com câmera sem câmera, com todo tipo de objeto, parecem ser a coisa mais normal do mundo. No filme, é a hora de mais uma criança se perder: aquela que se acha a melhor em tudo, competitiva até o último fio de cabelo, acha que ser uma vencedora é passar por cima dos outros e ser sempre a primeira.

Apesar dos avisos, aliás, bem discretos (como “Se você tiver menos de 18 anos não entre” dos sites de relacionamento) tais recomendações, também são pouco persuasivas, e nem de longe fazem mossa (marca) em suas **pulsões, desejos ou escolhas. Mesmo avisados de que aquele ainda seria um chiclete experimental, que não está pronto para consumo, os internautas o pegam da mão do dono e o mascam. A princípio se maravilham, sentem sabores singulares, mas aos poucos como no filme, as consequências vem e então Violete vai se fazendo roxa, inchada e para sempre marcada com aquela experiência.

Ou seja, se você não sabe ainda como avaliar com segurança as consequências das suas experiências na “sala das invenções” dos sites de relacionamento, procurem antes de experimentar, imaginar quais seriam as consequências de tais atos, principalmente para sua autoestima, para o que você acha de si mesmo, e para sua vida face a face, depois de tal experiência. Lembre-se de que experiências são individuais e cada um traz consigo suas marcas. O que pode ser bom para uns, pode não ser para outros.

Através de um elevador transparente, os outros continuam sua visita. Vendo coisas estranhas, às vezes boas, às vezes ruins, às vezes bonitas, às vezes nem tanto, chegam então à sala das nozes. E lá mais uma criança se perde. É a soberba. A criança mimada, que acha que pode ter tudo o que quer, que não respeita os outros, as regras, o seu próprio pai, ou o dono da Fábrica. Acha-se superior a todos e não tem medidas para conseguir o que quer. Quando não lhe é dado o esquilo que deseja, apesar de possuir outros tantos mascotes, ela mesma resolve pegá-lo. Acaba no lixo, selecionada como uma noz estragada pra sempre.

Nos sites, esses seriam os que passam do limite. Os que acham que vale tudo numa conquista, pois é o ganho o resultado final que visam. Podem mentir, falsear, inventar histórias e ser tudo que o outro quer que eles sejam. O objetivo final de atrair ou fazer sexo com alguém não é o que o satisfaz, mas sim, o conquistar sem pensar no outro, nos sentimentos do outro ou naquilo que será quebrado ou despedaçado pelo caminho. Sendo a conquista o interesse, o conquistado (ou conquistada) é rapidamente substituído pelo próximo “desafio”, pois não existe satisfação na relação, só na conquista.

Sem consciência de seus próprios desejos, vivem suas conquistas de forma superficial e magoam o outro sem dó. Alimentam as fantasias do outro, mesmo sabendo que não pretendem em hora nenhuma concluir o que prometem. Não se envolve emocionalmente, e apesar de se acharem os bons, os melhores, parecem viver num lixo emocional, sem muitas possibilidades de vínculos afetivos satisfatórios consigo ou com o outro. Ao final, esse personagem pode acabar acreditando que seu valor está em suas mentiras e não em si mesmo.

Ficamos então, com as duas últimas crianças. E Mike TV é o próximo que se perde. Ele é um hard usuário de tecnologia, acha que sabe tudo, se diverte na violência, e conseguiu entrar nessa visitação, por meio de uma contravenção, rakeando o sistema. É ele quem escolhe seu destino com a certeza de que é o melhor, não escuta os avisos de perigo e acaba teletransportado para dentro da televisão. Esticado posteriormente na sala onde se esticam os caramelos e sai dessa visita como papel plano, ou seja, perde sua dimensão espacial, passando a ser 2D, ao invés de 3D.

Intolerância às relações presenciais

Chegamos aqui, aos que se perdem virtualmente. Achando que seus relacionamentos pela internet podem substituir seus relacionamentos afetivos no mundo face a face, podem acabar com tantas dificuldades no sentir e na tolerância com o se relacionar no face a face, que podem acabar abrindo mão desses tipos de relacionamentos. E como Mike TV, acabam perdendo algumas possibilidades de ser, fazendo um uso restritivo da tecnologia, pois essa não vem para excluir comportamentos e sim para somar aos que já possuímos. Ela vem como ferramenta para que possamos ampliar nossos repertórios de vivência, e não restringi-los.

Visão e percepção correta de Charlie

Temos então, nosso vencedor: o bom usuário dos sites de relacionamento, o que usou a ferramenta de maneira saudável. Ele é Charlie, o menino que não era o melhor em nada, o menino normal, que não comia chocolate todos os dias e que não tinha tudo que queria. Mas possuía o elemento mais importante e decisivo nessa visita: tinha claro para si, quais eram os seus valores, não abre mão deles e os carrega pela visita toda. Mesmo com tudo que lhe é mostrado e oferecido, ele não se fascina com o superficial e é maturo emocionalmente a ponto de não querer comer tudo que vê pela frente, só porque está à disposição. Ele sabe, desde o principio, o que é bom pra ele, e apesar das varias tentações, não abre mão de seus valores e de sua ética pessoal. É sincero e honesto consigo mesmo o tempo todo e sempre que tem alguma dúvida, se remete a quem confia. E aqui, novamente como no filme, temos um paralelo, quem consegue o que quer em sites de relacionamento?

Fácil: quem sabe o que quer e sabe expor esse querer de maneira clara, sincera e honesta. Quem é emocionalmente maduro para buscar só o que deseja e não a quantidade, quem se contenta com uma busca que traz três ou quatro pretendentes e não trinta ou quarenta. E quem, principalmente, não abre mão de seus valores em suas conversas e conquistas quando está no virtual, só porque sabe que isso agradaria ou conquistaria o outro. Assim como Charlie se dá bem nos sites de relacionamento, quem consegue viver as coisas de maneira mais integrada, sem tanta fragmentação. Quem consegue trazer pra dentro da fantástica fabrica de chocolate, seus valores, sua ética, sua casa e sua família.

*A história já mereceu duas adaptações para o cinema. A última transposição do conto para a tela foi com o filme homônimo do diretor Tim Burton, com o ator Johnny Depp no papel de Willy Wonka, que foi lançado em julho de 2005 nos cinemas brasileiros. Charlie e a Fábrica de Chocolate, o conto infantil, foi lançado em 1964 nos Estados Unidos e obteve grande sucesso nas livrarias. Isso levou o diretor Mel Stuart a filmá-lo em 1971, com adaptação para o cinema feita pelo próprio escritor. Essa primeira versão para o cinema teve Gene Wilder como o polivalente Sr. Wonka. Fonte Wikipedia.

** Na psicanálise freudiana, processo dinâmico, pressão ou força originária de um estado de tensão ou excitação corporal que move o organismo para o objetivo de o suprimir. Fonte Dicionário Aulete