Somos todos anormais

por Samanta Obadia

Fui assistir a um filme do Festival Assim Vivemos 2009, chamado “Somos todos Daniel” (1), onde os personagens pontuam a diferença de uma forma muito especial. A visão ampla do diretor nos permite ver, sem preconceitos, as realidades de famílias que lidam com as dificuldades de seus filhos com deficiências intelectuais, emocionais e comportamentais.

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Essa vivência cinéfila aumentou meu ângulo de visão, levando-me a pensar a vida emocional de tantos, com tamanhas dificuldades, ainda que em graus diferentes.

Interessada e insatisfeita fui assistir “O nome dela é Sabine” (2), a fim de mergulhar ainda mais, nesse universo árido e complexo. O olhar da irmã de Sabine (diretora do filme), a reconhecida atriz Sandrine Bonnaire, reafirma o doloroso lugar de quem ama e não entende o outro, simplesmente porque não nos é permitida tal grandeza.

Todavia, é preciso aproveitar a amplitude desse olhar para perceber que as pessoas, rotuladas de ‘normais’, também sofrem em suas diferenças. Pois não têm direito a desvios, não lhes é permitida a raiva, as alterações de humor, o desequilíbrio, a melancolia, ou a loucura.

Quem estabeleceu esses dogmas?

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Em que cartilha está escrito que não podemos entrar em desequilíbrio?

E por que o equilíbrio é o que se chama de ‘normal’?

Será que a normalidade humana não está justamente nesse desequilibrar-se?

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Observar o outro à distância adequada é um exercício contínuo de autoconhecimento. Permitir ao outro uma alimentação diferente, gestos e gostos que desconheço, escolhas extremas, insuficiências e incompetências, é uma forma de dizer “eu também não sou você”. É uma maneira de estar junto sem estar dentro, é entender que a beleza do encontro está justamente em vê-lo de um lugar, que ele não poderá ocupar jamais. E ser interessante por isso.

Ou seja, o meu desejo na direção do outro está justamente na diferença, no microcosmo que cada um de nós é. De preferência, sem parâmetros.

Esta reflexão me leva a estar junto com Caetano Veloso, quando ele afirma que ‘de perto, ninguém é normal’.

(1) No verão de 2007, estudantes da Escola Summit de Montreal, com deficiências intelectuais, emocionais e comportamentais ensaiam uma complexa peça de teatro musical. A peça conta a jornada de um estudante com autismo que chega a uma nova escola. As belas e desajeitadas performances desses estudantes expõem uma profunda e perturbadora verdade. Eles não são diferentes de nós, não querem a nossa piedade, querem nos mostrar quem são, e ser compreendidos. O documentário acompanha os ensaios da peça, dando destaque a seis dos estudantes, seus pais e professores. Autismo, Aspergers, Síndrome de Down, TORCH Syndrome, A.D.D., suas manifestações e consequências são revelados. Essa jornada, em que às vezes a ficção se mistura com a realidade, revela a beleza desses jovens, suas habilidades e o fascinante efeito de sua honestidade. Dir. Jesse Heffring / Canadá / 92′

(2) A atriz Sandrine Bonnaire narra a história da irmã Sabine, que é autista, através de imagens filmadas ao longo de 25 anos. Sandrine testemunha o momento atual de Sabine, que depois de uma estadia infeliz num hospital psiquiátrico, passa a viver numa estrutura adaptada a ela. E, dessa forma, numa casa na região de Charente, na França, reencontra a felicidade. A partir desse episódio, o documentário mostra a penúria e o despreparo de algumas instituições especializadas e as dramáticas consequências que podem causar aos doentes. Participou da Quinzena dos Realizadores em Cannes 2007.