Tudo o que fazemos online está inserido no mundo real

por Katty Zúñiga Pareja – psicóloga componente do NPPI

Conversando com amigos, ainda me deparo com muitos deles se referindo às atividades que realizam na internet como se suas "vidas virtuais" fossem vivências separadas da "vida real", isto é, independentes do que fazem fora da web.

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Mas o que a internet – as redes sociais e todas as modalidades digitais, inclusive games – tem de especial que leva as pessoas a criar essa cisão entre suas supostas vidas reais e virtuais?

Percebo essa atitude principalmente em adultos, que têm muitos questionamentos sobre as coisas que fazem na internet. Nos jovens essa cisão pouco aparece expressa, enquanto as crianças parecem sequer imaginar essa separação.

Por coincidência, soube recentemente da experiência do jornalista Paul Miller, editor-sênior do portal The Verge, que, por decisão própria, abandonou completamente os meios digitais por um ano, ficou sem internet, desligou o smartphone e ficou completamente offline. Paul tomou essa decisão no começo de 2012, porque achava que a internet ocupava tempo demais na sua "vida real", o privava de experiências "reais" enriquecedoras e até o afastava de pessoais "reais". Cortou todos os vínculos online para encontrar o que ele mesmo chamou de "um Paul melhor". Um relato detalhado da vivência, feito por ele mesmo, pode ser lido – veja aqui. Ao final da experiência e já reconectado, ele reconhece: "eu estava errado".

No começo, parecia que todos os acontecimentos pareciam corroborar sua tese. Mas, com o passar do tempo, ele foi percebendo que não era bem assim. No final, ele concluiu justamente que a "vida real" e a "vida virtual" são uma coisa só: sua própria vida. O que ele faz ou deixa de fazer, suas virtudes e seus defeitos, como se relaciona com as pessoas, como trabalha, enfim como vive depende única e exclusivamente dele mesmo. A internet é só uma ferramenta para expressar tudo isso. Pode até potencializar cada uma dessas características, mas ela não cria nem destrói nada por si mesma.

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O que motivou Paul Miller a separar a "vida real" da "virtual" e como ele chegou à conclusão de que isso não existe, aconteceu seguindo padrões de pensamento que inconscientemente estão dentro de todos nós. Essa dinâmica de desenvolvimento das pessoas é descrita pela psicologia analítica de Jung.

Esse caminho pode ser trilhado por qualquer um em diferentes momentos de sua vida, principalmente a partir da adolescência, e por diferentes motivos. Esse processo é representado pelo "Mito do Herói".

Em sua estrutura básica, esse mito narra um processo de afastamento, ou isolamento do indivíduo, que inicia uma jornada da busca por algo de grande importância para ele ou para seu povo, e seu posterior retorno ao local de sua origem. O mito é dividido em três fases principais. A primeira delas é a "partida", na qual o herói deixa a casa e todo seu conforto e parte para a aventura. A segunda – a "iniciação" – é aquela na qual o herói precisa passar por todos os desafios que promoverão a sua transformação. E a última fase é o "retorno", quando o herói regressa à sua casa mais amadurecido, portador de novos conhecimentos e habilidades.

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No caso de Paul Miller, a "partida" correspondeu ao abandono de uma vida totalmente conectada à internet para um período offline, em busca do seu "Paul melhor". Ao longo do ano, foi confrontado com novas realidades, que lhe exigiram e proporcionaram novas experiências, mas que também permitiram ampliar a sua consciência sobre vários aspectos da vida cotidiana da atualidade. Entre esses, atividades como usar o correio convencional, o mapa impresso em papel, andar de bicicleta e encontrar pessoas presencialmente. Se, por um lado, o fato de viver dessa forma lhe proporcionava novos prazeres, por outro ele se sentia angustiado, pois muitas coisas passaram a ser muito mais difíceis de ser realizadas, como responder a correspondência ou até mesmo encontrar as pessoas.

Por isso, passada a fase inicial da euforia, que o levou até mesmo a perder nas primeiras semanas mais de sete quilos sem fazer esforço, o jornalista começou a perceber que os problemas por estar online haviam sido substituídos por outros, gerados pelo fato de estar offline. Mas, esses "novos problemas" provinham, na realidade, dele mesmo e, de certa forma, percebeu serem esses apenas novas versões dos mesmos "velhos problemas".

A partir dessa percepção, Miller concluiu que não existia uma real separação entre esses dois mundos – o virtual e o real – mas que, em ambos os ambientes seu comportamento apenas correspondia às diferentes expressões do seu próprio ser. E ainda, que as coisas boas e ruins que aconteciam quando ele estava online ou offline são decorrências de sua forma particular de ser, e não do fato de estar conectado ou não.

A internet é apenas uma mais uma ferramenta que todos nós podemos utilizar. Pelo fato dela nos proporcionar um leque variado de alternativas e possibilidades, as pessoas, principalmente os adultos, estabelecem essa separação entre as atividades realizadas online e o que fazemos presencialmente. As crianças não agem dessa forma, porque elas já conheceram a internet de uma maneira totalmente integrada ao seu cotidiano: algo tão simples quanto o fato da eletricidade estar presente e disponível nas tomadas das suas casas.

Estabelecer contatos online é, de certa forma, semelhante a falarmos com alguém pelo telefone. Antes da sua invenção, precisávamos ir até a pessoa com quem quiséssemos conversar. Com o surgimento do telefone, deixou de ser necessário. Mas isso não quer dizer que o interlocutor esteja dentro do telefone (e ninguém hoje pensaria dessa forma).

De maneira equivalente, tudo o que hoje já fazemos via internet pertence e está inserido no nosso mundo, no "mundo real" e não apenas faz parte de um suposto "mundo virtual". Paul Miller precisou percorrer a jornada do herói durante um ano para chegar a essa conclusão: a vida é, na realidade, muito mais simples e única.