Intolerância religiosa, fanatismo, egrégoras e comunicação

Por Roberto Goldkorn

Sempre gostei de cogumelos. Desde os frescos que minha mãe colocava no strogonoff, até o funghi e o mais recente na minha vida, o shimeji. Mas a minha mulher vinda de outra tradição alimentar, sempre torceu o nariz para as minhas gastronomias ‘cogumelianas’.

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Recentemente fomos a um restaurante francês de um amigo. Como éramos convidados, me senti na liberdade de dizer para ele: “Não vamos escolher, você decide o que iremos comer”.

Por ironia do destino ele mandou um peixe soberbo com molho de shiitake shimeji! Fiquei quieto e esperei para ver a reação dela. Talvez, embalada pela excelência do restaurante, pela magia do ambiente requintado, ela deu as garfadas fatais. Não foi surpresa para mim quando ela aprovou o sabor e me perguntou: “Que molho é esse?” Enrolei um pouco para responder, até que ela tivesse comido pelo menos metade. Aí revelei a cruenta verdade. Depois de alguns segundos, ela disse: “Se você fizesse assim eu comeria…”

Soldados americanos presos durante a guerra da Coreia, morriam aos magotes porque se recusavam a comer “àquela comida”, que ao contrário do que diziam, era bastante nutritiva. Imigrantes chineses que foram para as ilhas Fiji, para substituir os nativos que morreram de sarampo, se recusaram a comer a abundante e variada dieta dos habitantes da Ilha. Por isso ficaram só no arroz, muitos adoeceram e até morreram de beribéri. [1]

Essa intolerância alimentar tem explicações diversas, mas não nos cabe aqui buscá-las. Na verdade o que pretendo é falar das várias intolerâncias que fazemos questão de preservar como se fosse um tesouro pessoal, ou algo que devemos à nossa cultura ou à nossa tradição familiar.

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Há vinte anos que respondo à pergunta sobre qual é a maior ameaça à humanidade, dizendo: a intolerância religiosa. Mas não me refiro apenas à intolerância religiosa das seitas e religiões. Quando as torcidas organizadas fazem emboscadas para atacar e muitas vezes assassinar torcedores de outros times, chamo isso de intolerância religiosa.

Quando militantes de partidos políticos depredam, seqüestram, matam, ou intimidam seus opositores estão praticando a intolerância religiosa. Quando numa família uma posição ou comportamento é imposto pela força ou pela chantagem, isso também é uma atitude religiosa intolerante.

Mas dirão alguns: por que você insiste em colocar na conta das religiões todas essas intolerâncias, inclusive de quem abomina a religião? Porque todos esses comportamentos e visões de mundo estão baseados na crença inabalável de uma verdade absoluta, e de que os seus perpetradores estão de posse (e só eles) dessa verdade, tudo o mais, todo o resto, é espúrio, mentiroso, indigno e traição.

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Reparem nos rituais de algumas torcidas organizadas do futebol brasileiro, eles não têm fortes semelhanças aos cultos religiosos? Muitos locutores do esporte inconscientemente replicam esse conceito quando dizem que tal estádio é o ‘templo’ do futebol, ou que aqueles jogadores são verdadeiros ‘deuses’ da bola.

A diferença nos métodos é que ao contrário das religiões, os fanáticos torcedores não tentam catequizar os ‘infiéis’ de outros times, e sim feri-los, exterminá-los, como infelizmente tem acontecido. Essa crença absoluta na verdade absoluta (e que ela pertence a alguém) é na verdade um processo de hipnose ou pós-hipnose continuada, que reage a determinados estímulos para se manifestar.

Egrégoras

Naturalmente existe um fator espiritual nesse processo, e não apenas psíquico, acredito eu. As emoções e pensamentos geram imensas ‘nuvens’ de energia psíquica a que os ocultistas chamam de egrégoras. Estas acabam desenvolvendo um tipo de ‘inteligência’ primitiva, como se fossem imensas amebas etéreas, que só desejam manter-se vivas, fortalecer-se se alimentando de mais energia daquele tipo, e evitando a destruição. Essa relação entre os humanos geradores de energia-alimento, e as égrégoras é retroalimentada, criando uma simbiose tão mais terrível por ser inconsciente.

A grande ironia dessa história, é que essas forças primitivas pré-culturais, se fortaleceram na modernidade, pois se antes elas dependiam da capacidade dos indivíduos de se moverem para se agregar e depois atacar seus adversários (e isso era sempre um processo moroso), agora elas contam com a velocidade máxima dos meios de comunicação.

Isso já aconteceu antes. Com a domesticação do cavalo, as grandes egrégoras da destruição puderam usufruir imensos e fartos banquetes de ódio, e sangue. Hoje os gatilhos para a congregação dos andróides em grupos de ação das egrégoras utiliza a Internet, o celular, a TV, e os aviões para agilizar e tornar mais contundentes as suas intolerâncias. Essa é uma ameaça real às frágeis instituições que construímos, pois apenas as construímos fora, externamente, e deixamos o espaço mental pessoal vazio, portanto cooptável pelas egrégoras ‘religiosas’, sanguinolentas, tenham elas as bandeiras que tiverem.

O que fazer diante dessa ameaça real? Simplesmente estalar os dedos dando o comando de despertar? Tentar o diálogo ou a contracooptação dessas massas ensandecidas? Usar a razão para erodir a relação insana entre as egrégoras e os andróides que pensam ser humanos?

Infelizmente tudo isso já foi tentado, e estamos cada vez mais à mercê dessas forças nefastas. Diante da brutalidade das ameaças ostensivas as vozes mais lúcidas se calam, e se recolhem ao seu anonimato seguro. Assim os humanos reais, lúcidos, não cooptados pelas amebas monstruosas, não vão mais aos estádios, não vão mais aos templos, não vão mais às ruas, não emitem mais suas opiniões esclarecedoras, e duvidam de si mesmos, de sua lucidez.

Volto à pergunta: o que fazer diante dessa “realidade”? Renuncio por absoluta incompetência às respostas perfeitas, que servem como chave-mestra para todas as fechaduras. Minha resposta é individual. Quando a minha mulher recusa provar meus cogumelos, tento apenas mais uma vez convencê-la a partilhar comigo desse manjar dos deuses. Se ela se recusa, vou lamentar muito ter de degustar sozinho, quase em êxtase, esse presente do Oriente (se).

[1] Do livro Comida, uma História, de Felipe Fernadez-Armesto, Record, pp 208/209, Rio, 2005.