Ficar na janela ou abrir a porta? Os jeitos de viver e suas consequências

por Regina Wielenska

 

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Você está preparado e aberto para viver a vida?

Quatro décadas separam as canções que escolhi para abrir a coluna desta quinzena. Antes de discutir o que planejei, peço que primeiro você se disponha a refletir por um instante sobre as letras que copiei abaixo.

Carolina (interpretada por Chico Buarque)
Comp.: Chico Buarque (1967)

Carolina, nos seus olhos fundos guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei, que não vai dar, seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar, é hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo, pela janela, ah que lindo
Mas Carolina não viu…
Carolina, nos seus olhos tristes, guarda tanto amor, o amor que já não existe,
Eu bem que avisei, vai acabar, de tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar, agora não sei como explicar
Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela e só Carolina não viu.

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Dance agora (interpretada por Cachorro Grande)
Comp.: Beto Bruno/Marcelo Gross/Rodolpho Krieger (2009)

Se você não está dançando, então, você está por fora
Se você não sai de casa, então, faça isso agora
Vai ficar aí sentada, vendo a vida numa tela
Seus amigos nunca viu, nunca abre essa janela
Eu queria ver você abrir a porta
Eu queria ver você dançando agora
Quanto tempo está perdendo, jogando a sua vida fora
Se você quer ficar por dentro, então, saia e dance agora

O que há em comum entre elas? Salvo equívoco de minha parte, ambas as canções abordam facetas complementares da mesma questão. Carolina, trancada em casa, chora e se mantém congelada na dor do amor que nunca veio, ou que foi embora sem deixar endereço. A moça da segunda canção passa seus dias passivamente, hipnotizada pelo monitor de TV ou do computador. Ambas são alertadas por quem lhes deseja o bem. Em vão. Conheci, dentro e fora do consultório, muitas pessoas em condição semelhante. Um exame de consciência mais apurado talvez me faça constatar, ainda que a contragosto, que na adolescência tive “momentos carolinas”.

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Isolamento: o que ocorre quando nos comportamos assim

Qual a consequência desse jeito de funcionar no mundo?

Chico Buarque nos revela que a moça não deu chance para quem a convidou para dançar, perdeu oportunidades raras (testemunhar o florescer de uma rosa e a estrela riscando o céu, até ignorou poemas em sua homenagem). E deixou de ir à festa. Agora é tarde, a festa acabou e o barco da vida partiu. O trio de compositores de Dance Agora, por sua vez, insinua que ela ela se sente por fora, está sem amigos e provavelmente perde tempo ao agir assim. O mundo não espera. Em ambos os casos constatamos que o isolamento produziu perdas, talvez as moças não tivessem identificado isso, e mesmo que estivessem cientes das consequências adversas, parece que não mudaram seu comportamento.

Tudo, ou quase tudo, tem explicação

Como explicar que óbvias perdas não fazem uma mulher agir de outro modo? Penso em, ao menos, três hipóteses:

– faltariam a ela habilidades básicas de relacionamento e “sofrer, recolhida na toca” torna-se a única alternativa possível, mesmo com prejuízos; nesse caso imagino ser a moça alguém que cresceu isolada das pessoas, no seio de uma família problemática ou algo parecido;

– até aquela fase, quase tudo lhe havia sido oferecido de mão beijada e ela precisou se mexer pouco para conquistar o que queria: para ela, até então, bastava esbanjar seu charme e sorriso que as coisas aconteciam do modo que preferia; ao sofrer a primeira decepção, trancou-se para a vida, raivosa ou desamparada, à espera de que resolvam por ela e lhe tragam de bandeja o que não lhe parecia possível obter pelas vias do esforço adicional;

– por fim, imagino uma terceira hipótese mais ampla, e que talvez englobe as duas anteriores: sem se dar conta, as duas moças estariam evitando entrar em contato com a vida “de verdade” porque essa é plena em desafios adicionais, novas dificuldades, riscos de toda sorte. Por exemplo, só de pensar no risco de paquerar alguém (conseguirei ou não um novo amor?) e fracassar de novo (e se ele me trair, e se for embora, e se não gostar de mim?) ela se recolhe na toca da solidão. Quem sai para dançar, potencialmente corre o risco de ser o mais desajeitado do salão, ou de não conseguir um par. E por aí vai, viver é muito perigoso, o Riobaldo de João Guimarães Rosa já afirmou.

O que se pode fazer?

Deixo claro que não tenho a fórmula da felicidade, eterna ou fugaz. Aliás, ficar à espreita do sucesso certeiro ou da felicidade garantida é encrenca ainda maior.

Digo isso porque a pessoa acabará por repetir o padrão de comportamento que está lhe prejudicando, cavando lentamente a própria sepultura. Vai viver como se morta fosse…

Então o primeiro passo é a pessoa reconhecer que o jeito de viver que adotou até agora simplesmente não funciona, só serviu para ampliar o tamanho do problema. Desistir de lutar contra moinhos de vento travestidos de dragões poderia ter feito um bem enorme ao persistente Dom Quixote. Renunciar àquela inútil e tão familiar forma de proteção provavelmente produzirá dor, insegurança, sintomas físicos que aprendemos a nomear como medo e ansiedade. Ótimo, entendo isso como o sinal de que a pessoa começa a tatear por um território que desconhece, mas que precisa percorrer. Daqui em diante, se ela errar, será por motivos novos. Ao menos…

Em mutação, só lhe restará experimentar trilhas diferentes. Observar as pessoas, aprender com elas, experimentar o que desconhece, observar os resultados, faturar cada pista ou descoberta que a vida oferecer. Será um intensivão do viver, uma espécie de curso supletivo das habilidades que estão se formando por meio da prática, da tentativa e erro. Parece provável que mais cedo ou mais tarde a pessoa acabará por colher algum fruto do novo comportamento. Quando plantamos uma muda de árvore frutífera e cuidamos a contento desse ser, na primeira temporada talvez sejamos contemplados com uma miserável dúzia de jabuticabas. Mas lembre-se de que no ano anterior tua safra foi zero jabuticabas. Você tem sede de baciadas, comecou com apenas doze frutinhas.

Provavelmente vai ser assim com a mudança de comportamento, quanto mais nos empenharmos, e sem pressa alguma, mais frutos colheremos. Mesmo assim não há garantias, afinal alguma praga pode assolar nosso pomar e aí o jeito é corrigir o problema e replantar. Pode chorar, lançar impropérios ao universo, só colhe frutos quem planta, mas nem todos que plantam colhem frutos. Ganhar o jogo envolve probabilidades e muita resistência à frustração.

Em suma, a saída para Carolina é aceitar a dor, tolerar as novas emoções que aparecerem, reconhecer que sair do problema exige empenho, e arregaçar as mangas. Abrir portas e janelas, tirar a poeira da alma, dirigir novo olhar para as pessoas, flores, estrelas. Dançar, aceitar poemas em sua homenagem, dar corda para quem lhe quer bem… Tudo isso ajudará ‘carolinas’ a caminharem ao encontro do sentido na vida, dos risos e das lágrimas que nos acompanham nessa jornada pessoal.