Resgate a sua criança interior

por Rosemeire Zago

Muitas vezes esquecemos de permitir que a maravilha e a beleza da vida penetrem em nossos corações. No entanto, precisamos nos sentir mais leves e soltar as partes mais rígidas do nosso ser, para nos conectarmos com nossos reais sentimentos, ou seja, com nossa criança interior.

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Nesta entrevista ao Vya Estelar, num total de 28 perguntas, divididas em duas partes, cada uma com 14 perguntas, a psicóloga Rosemeire Zago desvenda o arquétipo (imagem do inconsciente) da criança interior, a sua importância e como resgatá-la.

Vya Estelar – O que é a criança interior?

Rosemeire – Para a realidade psicológica, a criança é um símbolo, um meio para expressar um fato psíquico. Para entender essa simbologia e toda esta entrevista, sugiro que use suas faculdades intuitivas, mais do que as analíticas.

Ou seja, a criança representa todas as nossas lembranças da infância, nossas emoções, nossos sonhos, é tudo que está abandonado. É um símbolo sempre presente de nossas esperanças e possibilidades criativas.

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A criança interior representa assim a totalidade na nossa psique (mente), a renovação psicológica. É nossa parte genuína que vamos perdendo quando adultos. É a parte que nos falta quando nos sentimos vazios internamente. Ela é o ser, sentir, vivenciar, viver.

Vya Estelar – Qual é a importância em encontrar a criança interior?

Rosemeire – É a descoberta de nós mesmos. É importante entrar em contato com a criança interior para vivenciarmos o processo de individuação, ou seja, o crescimento.

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Entrar em contato com ela é renovar, expandir. Isso se dá quando entramos em contato com nossos reais sentimentos, deixando as máscaras de lado e nos conscientizamos que temos o lado negativo, mas também o positivo. Com isso vamos ao encontro de nosso verdadeiro self, ou seja, o "verdadeiro eu".

É preciso amar primeiro nossa criança, para depois amarmos outras pessoas e recebermos amor, do contrário, sempre serão relacionamentos doentes e destrutivos, muitas vezes repetindo padrões da infância. Possuímos uma única arma contra dificuldades internas, que é a descoberta emocional da verdade sobre a história individual de nossa infância.

Hoje o resgate da criança interior é o elemento mais importante do trabalho terapêutico, pois oferece a esperança que todos nós ansiamos. Ouvir essa criança é essencial ao processo de tornar-se único. A necessidade de encontrar a criança interior faz parte da jornada de todo ser humano que se encaminha na direção do autoconhecimento e de sua totalidade. Ninguém teve uma infância perfeita. Todos nós carregamos questões inconscientes que não foram resolvidas. Sabemos que 80 a 95% das pessoas não receberam atenção adequada, então o resgate da criança interior se torna a tarefa da maioria das pessoas.

Vya Estelar – Onde vive essa criança interior?

Rosemeire – Em nossas fantasias, devaneios, sonhos, desejos, imaginações, intuições e principalmente, em nossas emoções. Quando você chora, quem está chorando é sua criança; abandonada, sozinha. Está presente também na parte de nossa psique que vivencia a angústia e o sofrimento, como também quando você brinca, tem prazer naquilo que faz. Quando você cria algo também é sua criança, ela é nossa maior fonte de criatividade.

Vya Estelar – Todos nós temos essa criança?

Rosemeire – Sim. Todos nós tivemos uma infância, feliz ou não.
A criança sobrevive dentro de nós e está aguardando o reconhecimento de sua presença. Ainda existe uma criança viva em cada um de nós que continua precisando de pai e mãe. E nós devemos nos tornar seu pai e sua mãe, oferecendo à nossa própria criança interior a compreensão, amparo, carinho e amor, que muitos não tiveram na infância. Ou seja, alguém que suporte seu sofrimento e suas angústias.

"Não são os traumas que sofremos na infância que nos tornam emocionalmente doentes,
mas a incapacidade de expressar esses traumas".
Alice Miller

Vya Estelar – Como perdemos essa criança e quando?

Rosemeire – Por diversos motivos. Acontece mais ou menos assim: falta de demonstração de amor na infância, carência, dependência emocional, necessidade de aprovação, querer agradar para ser aceito e amado, afasta-se de quem é de verdade e a consequência é: angústia, crise e doença.

Perde-se o contato com a criança quando não sente permissão para expressar sentimentos de tristeza, raiva, perda, frustração, sente que seus sentimentos não importam, não se sente valorizado (a), amparado (a). Quando há abandono, críticas, cobranças, comparações, humilhações, tudo aquilo que o faz afastar-se de seus reais sentimentos e necessidades, ou seja, de quem realmente é, transformando-se naquilo que querem que seja. Não importa o que faça, nunca está certo. Nada do que diz, sente ou pensa está certo. É considerado o louco, o bobo. O sentimento que ficará registrado é o da rejeição, do abandono. A criança interior pode desaparecer com 5 anos.

Vya Estelar – Os pais são os culpados?

Rosemeire – Não, pois na verdade se eles não proporcionaram algo, é porque eles também não tinham ou até precisavam tanto quanto a criança. Quando falamos da maneira como os pais nos educaram, não estamos buscando culpados, mas sim a origem de muitos conflitos, para que haja uma compreensão e posterior elaboração.

Vya Estelar – Quem é o autor dessa teoria?

Rosemeire – Carl Gustav Jung, psquiatra suiço (1875-1961), que publicou o ensaio "A psicologia do Arquétipo da Criança" em 1940.

Tudo começou com ele próprio resgatando lembranças da sua infância. Ele vivia sob o domínio de uma pressão interna que o fez revisar toda sua vida. Ocorreu-lhe então uma lembrança, carregada de afeto, em que estava com a idade de dez ou doze anos. Lembrou-se de que, quando menino, gostava de brinquedos de construção, fazendo casinhas e castelos, usando garrafas como suportes. Depois usava pedras naturais e terra. Essa lembrança emergiu acompanhada de muita emoção. Perguntou-se como chegar a esse garoto. Percebeu que havia esquecido esse jovenzinho, mas ficou evidente para ele que aquela criança continuava viva e queria alguma coisa dele.

Brincar a sério

Pensou que só lhe restava uma forma de voltar aquele garoto e passou a se entregar sempre que o tempo o permitia, ao brinquedo de construção. Denominou esta atividade de "brincar a sério". Isso ocorreu quando estava desesperado com a perda de sua ligação com Freud e o rumo de sua vida profissional e pessoal.

Por intermédio desse "brincar a sério", entrou em contato com aquela sua criança esquecida e abandonada e a trouxe de volta para sua vida. Podemos dizer, que se tornou a mãe perdida de sua própria criança triste. Através desse contato com a criança interior, começou uma imensa onda de criatividade. Sempre que se sentia bloqueado ou precisava criar algo, se entregava ao brincar. Esse momento marcou um ponto crucial em seu destino. Na medida que conseguia traduzir as imagens que se ocultavam nas emoções, sentia paz.

Vya Estelar – Qual o principal sintoma da desconexão interna com a criança?

Rosemeire – Carência. Toda criança precisa de aprovação, quando não consegue obtê-la, não tem outra escolha senão encontrar amor e aprovação junto aos outros. Quando adultos, continuamos essa busca, é como se fosse a nossa própria criança buscando alguém que supra suas necessidades da infância. É um vazio nunca preenchido, uma carência eterna.

Carência afetiva

Isso é carência afetiva: precisar de que os outros preencham um vazio enorme. Na verdade, a pessoa se relaciona com outro buscando aquilo que ela não consegue dar a si própria, se relaciona com a parte que falta dela mesma. Essa carência é o reflexo de ausência dentro de si, que começa quando nos afastamos dos nossos reais sentimentos.

Por isso as pessoas se sentem tão sozinhas, carentes e assim mantêm relacionamentos destrutivos, dependentes. É o resultado da desconexão com ela mesma, ou seja, começa quando para ser aceita, se afasta de seus sentimentos. A conexão externa com os outros, só poderá acontecer quando houver uma conexão interna consigo mesma. Neste momento os relacionamentos serão muito mais saudáveis, pois estarão baseados na troca, no crescimento mútuo e não nas carências.

Desconexão e perda

A falta de conexão com a criança interior emerge de forma mais intensa em momentos de perda, sofrimento e abandono intenso. É quando a pessoa se sente perdida, abandonada, em desespero e profunda angústia. Acontece muito nos casos de perdas em geral, seja por morte ou separação. Muitas pessoas buscam uma relação de dependência, desejando ainda que inconscientemente, que o outro cuide dela, a alimente, se o outro não corresponde as suas necessidades ou quando o outro se parte, surge a decepção, frustração, desespero, pois perdeu o referencial ao colocar sua vida na mão de outra pessoa, quando na verdade, o referencial tem que estar dentro de si e acreditar que é capaz de cuidar de si mesma.

O perfeccionismo e o medo de estar errado também são sintomas da desconexão, pois desenvolve a necessidade de ser perfeito para ser aceito, fatos que ocorrem muito no ambiente de trabalho.

"Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo, e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa".
Jung

Vya Estelar – Só perde a conexão com a criança interior em casos de abandono na infância?

Rosemeire – Não, pois mesmo quando a mãe ou o pai esteve presente, a criança pode registrar o sentimento de abandono, como em momentos que não foi ouvida, ou seus sentimentos não foram reconhecidos, em lares de brigas, agressões, em famílias disfuncionais, ou seja, doentes emocionalmente. Podendo resultar em 2 aspectos principais:

profunda sensação de ausência pessoal de valor, achando-se sempre errada. Quantos adultos não se sentem assim? Desenvolvem assim uma enorme necessidade de agradar, dificuldade em dizer "não", como que para provarem (a si mesma) que tem valor, são importantes.

sensação de culpa. Como registrou que não foi amada, ou não o suficiente, se culpa. São aquelas pessoas que desenvolvem o papel de vítima, "tudo é culpa sua". Assim, apegam-se facilmente a qualquer objeto, pessoa, que represente segurança (sexo, dinheiro, poder).

Vazio só é preenchido pelo amor próprio

A ausência pessoal de valor (baixa autoestima) e sentimentos de culpa resulta geralmente no sentimento de inferioridade. Mas na verdade o que ocorre é que o adulto nega tudo isso, seus sentimentos verdadeiros e carências, passando a valorizar mais as conquistas externas, sempre "imaginado" que algo irá preencher seu vazio, quando na verdade esse vazio só pode ser preenchido através do amor próprio.

Vya Estelar – Há uma relação da educação da infância com a perda da criança?

Rosemeire – Sim, pois dependendo da maneira como fomos tratados, podemos perder o contato com nossa criança.

Por exemplo, famílias que não falam nada do que acontece, sabe aqueles sussurros das paredes? Nada influencia mais as crianças do que fatos silenciosos que ficam só no fundo e ninguém pode falar sobre eles. Podem levar uma pessoa à loucura, pois nunca se sabe o que está realmente acontecendo. Quando relembram fatos, não conseguem ver nenhuma relação dos seus sentimentos com as imagens registradas.
O que fica registrado na criança são os seus sentimentos da época.

O que sua casa sussurrava quando criança?

"Não há dinheiro suficiente".

"Você não é tão bonito, ou tão inteligente quanto seu irmão, prima".

As eternas comparações são um verdadeiro desastre na educação.

Ou ainda, "Você não sabe fazer nada, não presta para nada".

Ou a criança que vê a mãe chorando e ao perguntar o que houve, tem como resposta: "nada".

Como confiar?

Como as crianças não entendem, recorrem ao que chamamos de "pensamento mágico", ou seja, idealizam que tudo é ótimo, feliz. Quando adultos passam a ter muita dificuldade em entender o que houve. Mesmo que as palavras não sejam ditas claramente, as mensagens são ouvidas na psique da criança com a clareza como se cada palavra houvesse sido pronunciada.

Outro exemplo, se o pai espanca regularmente a mãe, que sentido tem para um menino que sua mãe bata nele, porque ele bate na irmã? Faz sentido dizerem que ele não pode fazer isso? Quando somos pequenos, quase sempre, os pais são os heróis.

Quando a criança se dá conta que seus pais nunca suportarão o que ela sente, ou é muito criticada, ou ainda, se sente rejeitada, deixada de lado, ela desiste de ser ela mesma e desenvolve o que chamamos de um "falso eu", ou seja, começa a ignorar seus sentimentos e ser da forma que acredita que será aceita, com isso se afasta de quem é realmente, originando o vazio, a busca pelo externo, a carência, a necessidade de aprovação, reconhecimento, agradar, ser aceita, enfim, surge a necessidade visceral de amor. Esse processo geralmente só é rompido e percebido através da psicoterapia.

Vya Estelar – Como evitar que isso ocorra, que orientações é possível dar aos pais?

Rosemeire – O tempo e a qualidade que os pais dedicam às crianças indica para elas o grau que eles as valorizam. A questão não é tanto o que os pais não lhes dão, mas o que não lhes tiram, como sua capacidade de ser ela mesma, expressar seus sentimentos. A melhor forma de uma pessoa se perder dela mesma, é ignorarem ou invalidarem o que ela sente. Quando somos pequenos, não temos o benefício da comparação, discernimento, os pais são figuras divinas aos olhos infantis. Quando eles fazem as coisas de determinada maneira, parece para a criança pequena, que essa é a maneira como as coisas devem ser feitas.

Bem amadas!

As crianças amadas sabem que são valorizadas, e essa sensação de valor é essencial à saúde mental. E quando uma pessoa se sente valiosa, ela cuidará de si mesma, suprindo todas suas necessidades, como alguém cuida de algo de valor. Ela não dependerá que outros a façam se sentir importante, pois ela saberá disso. Não permitirá que a maltratem, não aceitará migalhas para ter um pouco de atenção e amor.

Vya Estelar – A depressão tem algo a ver com a perda da criança?

Rosemeire – Acredito que sim. A depressão é causada pelo fato da criança ter que se adaptar a um "falso eu", abandonando seu eu verdadeiro, o que cria um sentimento de vazio. Se a depressão antes de tudo é um convite à introspecção, olhar para dentro de si em busca de algo, pode ser a oportunidade da pessoa encontrar-se. Jung já dizia que a depressão pode ser concebida como um mergulho no inconsciente, com o propósito de dar início a uma viagem pelo seu próprio interior, ou seja, uma oportunidade para crescer, proporcionando e aumentando seu autoconhecimento. E entrar em contato com sua criança interior pode proporcionar esse encontro.

Não só a depressão, mas qualquer outro sintoma, ou fracasso, momentos de dor, solidão, devem ser considerados um convite para as pessoas renascerem para uma vida diferente, pois podemos neste momento perceber nossos recursos interiores e que somos capazes. É o momento que poderá proporcionar crescimento, o encontro com seu verdadeiro eu.

Vya Estelar – E pessoas agressivas?

Rosemeire – O comportamento agressivo é o resultado da violência na infância e da mágoa e da dor não resolvidas. Os agressivos não assumem a responsabilidade por seu comportamento, porque geralmente agem assim de forma inconsciente, apenas repetindo um padrão conhecido. A energia emocional do passado, não resolvida, ou seja, não tendo com quem expressar e suportá-la, acaba sendo expressa da única forma conhecida, repetindo o padrão. As crianças precisam da segurança do exemplo de emoções saudáveis. Quando o ambiente familiar é de violência, quando adultos repetem o que experimentaram na infância. Inconscientemente, tendemos a repetir alguns padrões negativos, até que através do sofrimento intenso, consigamos perceber as mensagens e modificar nossa realidade.

Vya Estelar – Como posso ajudar alguém a encontrar sua criança interior?

Rosemeire – Apoiando e permitindo que expresse seus reais sentimentos, dando muito colo.