Entenda o mandalam: espaço sagrado individual concebido pelos hindus

por Nicole Witek

Uttarakhand, no Norte da Índia (veja imagem abaixo), se expande sobre quase 20.000 km2, com uma população de quase 10 milhões de habitantes.

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Esse estado tem fronteiras com o Nepal e a China. O pico mais elevado, Nanda Devi tem 7.817m altura. Muitos rios, incluído o rio Ganges e o Yamuna, têm sua origem aqui. A história do Ganges é totalmente intrincada com a história da civilização hindu.

Para os hindus, essa região é considerada como a moradia dos deuses. Essa região e tão sagrada que cada um que pisa nesse solo é candidato à iluminação.

Como você pode acreditar, a iluminação começa pelas regras de disciplina: nesse estado é considerado fora da lei comer carne ou beber álcool para conseguir se aproximar dos deuses.

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Foi lá que passei o mês de agosto! Pertinho do Tibet, onde o rio Ganges nasce. Essa região abriga milhares de santuários, derivados das narrativas de textos sagrados: uma gota do néctar da imortalidade caiu do pote que deuses e demônios disputavam, e estamos em Haridwar, cidade sagrada que hospeda um dos maiores festivais do mundo – o Kumbh Mela – com 12 milhões de fiéis a cada ano. Outra foi o lugar onde o sábio Vyasa contava o épico Mahabharat* para o deus Ganesh… E assim nasce o santuário da gruta em Mana, cerca de 20 km da fronteira com a China…
Ganesha: Deidade hindu que rege a escrita e remove os obstáculos

Esses santuários atraem milhões de peregrinos hindus e Sadhus, em busca da imersão na topologia sagrada dos textos mitológicos do Hinduísmo.

Textos mitológicos? Para nós no Ocidente, sim, mas para os Hindus não. Essas narrativas fazem parte da história da humanidade. Eles falam de tempos remotos, onde homens e deuses tinham grandes poderes. O mundo do mito é mais importante que a realidade que nós enxergamos com nossos sentidos.

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Vale a pena lembrar que, segundo a filosofia hindu, a percepção do mundo como percebida pelo senso comuné, unicamente, uma porção da realidade. A realidade é a parte que nós percebemos do verdadeiro. O verdadeiro é aquilo que é. Isso leva à conclusão de que o real de cada pessoa é diferente, que a percepção de cada um é uma realidade diferente.

Agir através do corpo deve ser considerado na busca pelo verdadeiro, já que o universo é um todo, permeado pelo verdadeiro. O Eu verdadeiro percebe e age através do corpo. Geralmente somos levados pela nossa realidade e achamos que o que percebemos é a realidade.

Então, bem-vindo ao território mítico do deus Shiva: deidade hindu que destrói as ilusões. Bem-vindo ao território dos Nathas, que foram instruídos nessa região. Como conta a lenda, Matsyendra foi engolido por um peixe e, enquanto estava dentro do ventre do peixe, ouviu as instruções e os ensinamentos que Shiva estava transmitindo para sua esposa Parvati. Para garantir a confidencialidade, Shiva tinha levado a esposa no fundo do oceano, assim ninguém o ouviria. Porém, o Matsyendra ouviu tudo. Depois de ter sido resgatado por um pescador, Matsyendra fundou o grupo dos Nathas (senhores, protetores). Um dos seus discípulos expandiu os ensinamentos, Gorakshanath que foi o inventor do original Hatha Yoga. Uma particularidade dos Nathas é que eles não reconhecem as castas e por isso sua tradição foi adotada por vários reis e se tornou confidencial e secreta.

Os Nathas elaboraram uma prática derivada de uma filosofia cuja meta é o despertar das melhores qualidades humanas, tanto no nível espiritual, energético mental, como físico. Essa visão do mundo, essa metafísica, é muito técnica e não se refere à nenhuma religião. Trata-se de práticas internas, na solidão de si mesmo, para encontrar a melhor eficiência.

Levando em conta que o mítico é mais importante que o real, levando em conta que nossa relação com o espaço é muito linear e que nossa mente, limitada pela percepção, cria barreiras, se torna capital construir um espaço imaginário onde se organiza o universo, onde se coloca uma ordem intencional.

Para essa finalidade, foram elaboradas técnicas que serão ativadas em estado de consciência diferente. Num estado onde ou quando dominam o imaginário e os mitos.

Para o indiano, não há evolução, a meta de cada um é revelar o que é, ou o que somos intrinsecamente. Nosso estado intrínseco é o estado essencial, onde se deve perceber o objeto antes de ele existir. Se eu aprender a arte de criar um lugar meu, com meu tempo e meu espaço, domino meu universo.

A noção de território sagrado leva a noção de santuário: mesmo que existam nessa região muitos santuários, devemos estender o sentido da palavra para além do comum: um santuário é um lugar que deve ser protegido.

O mandalam é um espaço que nós construímos, um espaço sagrado "imune" às influências externas. Podemos construir na nossa imaginação esse mandalam, nosso espaço sagrado individual, com o yantra, o assento. Esse yantra possui indicações geográficas: pontos cardinais, portas de entrada, centro a partir do qual nos podemos projetar um infinito repleto de "plenitude", ou seja, "Natha". Com um potencial infinito.
Imagem de uma mandala: símbolo do espaço sagrado interno

Graças à topologia mítica, estamos em condição de nos libertar das limitações do cotidiano, para projetar um universo pleno, segundo nossa intenção. Essa topologia não tem limites, nem no tempo, nem no espaço.

Foi nessa terra dos Nathas que passei as últimas semanas e para voltar lá quando eu quiser, trouxe comigo este mapa! Através da meditação poderemos criar novamente um lugar sagrado. Aplicar uma topologia mítica, qualquer seja o lugar geográfico onde estejamos.

* Mahabharat: um dos dois maiores contos épicos da Índia com o Ramayana. Discussão sobre as metas humanas e o relacionamento entre o individuo, a sociedade e o mundo do Eu profundo.