Como preparamos os filhos para as dificuldades da vida?

por Regina Wielenska

Ser pai ou mãe não é bolinho. Ganhar o pão, cuidar da prole e de si, atender a demandas de toda sorte, sejam elas oriundas dos amigos, trabalho ou qualquer outra área.

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Nas redes sociais parece quase não haver problemas, cansaço, doenças (em especial as de natureza psiquiátrica), dívidas, decepções, fracassos. Nas redes sociais o eventual problema é dos outros, eu expresso uma virtual compaixão, digo palavras de apoio e tudo ok.

Há um estímulo poderoso nos meios de comunicação para a aquisição e ostentação de objetos e serviços. A grife da bolsa que a mulher usa pode sinalizar algo sobre ela, mas isso não basta, há que se seguir todo um estilo de vida compatível com a bolsa. Consultores são contratados, na estante há livros de arte, intocados, nunca lidos, foi recomendação do decorador famoso. O tempo que se gasta com cuidados com o corpo, gestão dos negócios, academia, reuniões sociais, um dia, com as modestas 24 horas, não parece bastar. Filhos são parte dos sonhos, e aí babás, escola de primeira linha, cursos extras, surge um monte de necessidades derivadas do fato de que essa criança precisa ser cuidada e amada. O duro é dispor de tempo para construir intimidade com a criança e ajudá-la a lidar com as sutilezas e frustrações da vida.

Um colega, também psicoterapeuta, certa vez partilhou comigo sua preocupação enorme com uma jovem cliente, de família abastada, que acabara de ganhar do pai seu primeiro carro, blindado, e cujo preço era compatível com um apartamento médio em São Paulo. A menina estava em fúria, porque o pai não comprara o carro na cor que ela queria. Essa baixíssima tolerância à frustração se correlaciona com o modo como havia sido criada, sem ser exposta a limites e nunca ter vivido frustrações, coisa tão comum no mundo de verdade.

A garota estava se relacionando mal com os colegas de faculdade, pessoas com histórias de vida e valores bem diferentes dos dela. A vida amorosa estava abaixo do que gostaria, sentia-se feia e agendara a ocasião para colocar prótese nas mamas e fazer tratamento contra a incipiente cellulite.

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Os rapazes que frequentavam as baladas das quais gostava pareciam mais querer ficar com todas, beber muito, usar outras drogas “pra se divertirem”, viajar, e só. Namoro era coisa fugaz. Já havia feito um aborto e tratou a infecção por HPV, “eles não usam camisinha”, dizia ela. Os pais a fizeram usar implante de anticoncepcional para evitar outros acidentes. Pensa em trancar a faculdade e passar um tempo em outro país. Falta passar a lábia nos pais. Tem comido menos, por vezes vomita depois de comer em excesso, ninguém desconfia. Fala pouco com as amigas sobre os problemas, porque elas são muito críticas, invejosas, e não confia nelas. Veio pra terapia depois que a mãe a encontrou chorando no quarto em desespero depois que levou um fora do mais recente namorado, que a chamou de vadia e burra. A mãe disse que não sabia o que dizer, que um psicólogo iria ajudar. Um abraço selou a conversa, a mãe estava atrasada pra consulta com a dermatologista famosa, para renovar o preenchimento. Não podia faltar, a lista de espera é enorme.  

Menos posses

Quem tem bem menos posses também luta, mas por outras coisas, como ter um local melhor onde morar, o que comer, isto se emprego e remuneração decente houver. Esse segmento social também está exposto ao massacre do consumo, pela TV ou rádio. Uma diarista, para sair de casa e chegar ao trabalho, pode gastar três horas. Na volta outro tanto. Dorme-se muito pouco, ao chegar em casa precisa cuidar de coisas sem fim: família, louça, marmitas, roupa e muito mais. Haverá água na pequena caixa d’água que baste pra essas funções? Haverá comida pra tantas barrigas com fome? Fica difícil olhar pra necessidades de cada filho, sejam as emocionais ou de ordem material.

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A criança de oito anos não vai pra escola e cuida como sabe do pequeno de quase dois anos. Não há creche, ou 300 nomes estão na lista de espera. Ratos já invadiram o barraco e morderam o pé do bebê. Em alguns casos o traficante do bairro alicia os meninos, oferecendo doces, tênis e promessas de prosperidade para a criança e sua família.

Vocês lembra da canção “Meu Guri”, do Chico Buarque?

Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice, ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos está um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar
Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo eu não disse, seu moço!
Ele disse que chegava lá

Esta mãe da canção fez, de fato, o que de melhor sabia, e isto não bastou para salvar o filho do ingresso no crime e de uma morte por execução. As árduas condições de vida competem com ter tempo, conhecimentos e energia física e emocional para dar conta de criar um indivíduo resiliente, ético, criativo, amoroso, paciente, interessado em aprender, trabalhar, que seja empático, compassivo e socialmente hábil ao se relacionar com as pessoas. É demais para uma só mãe ou pai ou avó, que sofrem pra ter um pouco de comida na mesa e sequer conseguem cuidar de si próprios.

Então ter muitos recursos materiais não basta pra criar filhos que possam crescer bem neste mundo complexo. E privações imensas também tendem a produzir problemas.

Tem saida pra esse dilema?

Uma coisa importante é tentar rever seus valores.

O que te move, o que realmente importa na vida?

Quais comportamentos e objetivos são valorizados na família, para adultos e crianças?

Como se proteger de influências nocivas?

Estas perguntas são críticas. Quer um exemplo? Vi no elevador, num fim de tarde, a mãe com uma filha de uns oito anos e um filho de treze, chegando rumo ao dentista. Entre o térreo e o andar do consultório, ouvi a mãe dizer pra menor que era ótimo que ela não teria aula no dia seguinte, que ela poderia dormir mais (a guria parecia exausta) e que infelizmente ela (a mãe) e o maior teriam trabalho e escola, respectivamente. Acrescentou, meio pesarosa, que ainda teria uma reunião de trabalho naquela mesma noite. Eu, que não presto, me pergunto, será que essas falas maternas não ensinam que estudar e trabalhar são, na verdade, um fardo? Será que a menor está dormindo o suficiente, para estar exausta tão cedo? Quem está em casa para lhe dar limites e mandá-la pra cama na hora que seria bacana pra sua saúde e bem-estar no dia seguinte? Não sei, mas certamente a mãe estava lutando pelo melhor, e sem condição de refletir sobre o valor positivo ou danoso de seus pequenos gestos, atos e omissões.

Termino a coluna, longa demais, talvez, com uma desculpa aos leitores. Levantei muita poeira e poucas respostas pude fornecer. Dividi com vocês minhas inquietações, e de coração aberto, eu garanto. Soluções fáceis, o que seria bom, não tenho não…