A arte como expressão do íntimo

Por Maria do Céu Formiga

Toda dor pede para ser curada.
Olho o curso das estrelas
e não tenho dúvidas de quem sou.
Então, que me vem agora
o susto das ausências
e das palavras de silêncio,
coisas sem perfume,
Acharei um lugar para elas
No meu jardim  (1)

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Nunca foi segredo que não saberia viver abaixo da linha do alumbramento, que sempre acreditei que a palavra escrita, embrulhada para presente, me ajudaria a saborear as esperas,  salvar o afeto da timidez e do anonimato, a tocar com o olhar que se perde entre as vidraças na experiência do infinito e flertar com a graça e com a solicitude.

Penso que antes mesmo de discriminar vogal de consoante, a poesia já ciscava pelas cercanias da minha alma. Pitangas azedinhas colhidas antes da hora (por puro desejo), puxa-puxa de morango grudado feito segredo no céu da boca junto ao tinteiro, bico de pena e blocos de papel reciclado presente quase diário de um pai apaixonado por cinema, Dolores Duran e caligrafia, foram meus amigos  de infância.

Passei pela meninice fadada ao equilíbrio por isso, o mata-borrão foi mais que suficiente para depurar meus excessos.

Optei por fixar os olhos não apenas sobre o que a mente estava disponível para compreender e descobri inocentemente, tenras e ternas primícias, coisas que não se esquece jamais. O que a memória ama, acaba virando eterno.

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Lembro de quando eu era pequena
e tinha mãos ainda menores
e fazia ninho para joaninha
nenhuma voar
e vivia cantando para os órfãos
que encontrava nos canteiros
e sentia
que, embora criada em cativeiro,
não se ausentava de mim
a vontade do albatroz (2)

A arte ofereceu ninho e adoção.

Minha estatura foi sendo medida por amigos que me ajudaram a desconstruir a lógica da desconfiança, a aceitar que sou movida pelo que não entendo e pelo desejo de espalhar sementes que desembocam em frutos, preferencialmente, elegantes.

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Amigos não me faltaram como Cervantes, Flaubert, James Joyce, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Clarice Lispector, Adélia Prado e o mais querido, Mário Quintana que me garantiu que além do mundo da claridade e o da penumbra, existe um outro, o do encanto.

  A minha palavra soará pelos corredores
do cotidiano
mais limpa que o sonoro canto do passarinho
que, incansavelmente, acorda antes da hora.
E, na velocidade do som, minha boca
buscará Deus para o beijo de quem volta,
afirmando sabiamente que gosta mesmo
de cantar com a alma
e contar vagalumes na noite (3)

Os chineses dizem que “a água procura o úmido e o fogo procura o seco”. A afinidade conecta tudo espontaneamente. Sem  esforço algum promove a intimidade.

A arte corre por dentro de mim como a água do rio corre para o mar. Sem forçar nada. Desliza sobre as aparências, não confronta,
não discute com o que encontra pelo caminho…flui…apenas.

Com compaixão vai me ensinando cada dia um pouco mais a respeito desta vida tão caleidoscópica que eu amo tanto e o faz sem esforços desmedidos porque todo o esforço excessivo, por ser pura obstinação, trinca a virtude de Lispector:

  “Tenho a meu favor tudo o que não sei.
Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor
É a minha largueza. É com ela que compreenderia
tudo. Tudo o que não sei é que constitui a
minha verdade…” (4)

Tendo a arte com expressão do íntimo lá pelas tantas, além de brincar com as palavras, descobri que poderia brincar com as cores… descobri a pintura! E se a poesia, com delicadeza  de gesto, já transitava faceira e lépida pela minha história, a aquarela me trouxe de volta aquelas inesquecíveis pitangas azedinhas agora colhidas em outra estação…a estação do fascínio…

Pintura e literatura, perfumes de um jardim de delícias. Sagrado recurso para esfriar a terra escaldada por sonhos descuidados.

Sou psicóloga de formação e entendo que, na vida psíquica, vemos o entrelaçar de manifestações que promovem o diálogo do consciente com o inconsciente por meio de uma linguagem particular: a linguagem dos símbolos que rompe qualquer interpretação linear, causal, cartesiana. O terapeuta e o artista têm uma relação bem íntima com os sonhos. Alguns, uma relação mimosa, bem resolvida.

Psique é imagem. Ficar na alma é ficar na imagem, vivenciá-la, não interpretá-la, apenas permitir que ela mesma diga a que veio. Através do deciframento das mensagens simbólicas da psique, há a  possibilidade de ligar o indivíduo às suas forças mais criativas, clarear os significados mais profundos da sua vida e redirecioná-lo a um caminho mais saudável, menos desassossegado.

Foi com esta linha de raciocínio que decidi abrir espaço para, no trabalho clínico, inserir o material artístico pintura (papel ou tela) e literatura (prosa ou verso) produzido no consultório com recurso adicional para compreender a expressiva linguagem do inconsciente e, pelos símbolos apresentados, compreender quinas diagnósticas,
percursos, atalhos e possíveis prognósticos para o tratamento.

Enfim , a arte como expressão do íntimo!

Que experiência! Além, é lógico, da alegria que a singela vivência com a arte oferece para quem tem vivido sob a égide do desconforto da alma, desconforto este, típico de uma sociedade que a partir da revolução científica do século XVII, ao desenvolver uma visão de mundo mecanicista, presenteou o indivíduo com a sensação de estar só em um mundo sem sentido.

A arte lança no concreto os mais variados símbolos, colocando-
os com os mais singulares conteúdos. Estes, não só falam  da interioridade  de cada um, mas também contam à história da humanidade sinalizando o caminho para o significado chegar à consciência.

Quando um indivíduo se depara com suas próprias construções artísticas, seja numa produção literária ficcional ou não, ou numa obra de arte recém-constelada, depara-se não só com a imagem refletida no espelho, mas também, com seu próprio processo e seus símbolos. Estes, às vezes, denotam um potencial já em
fase de realização, mesmo que ainda distante e desconhecido pela
consciência.

Impossível negar o se fez e se está vendo. Assim, resistências são afrouxadas facilitando a caminhada na perspectiva de um novo tempo. O conteúdo da arte promovida no setting terapêutico induz às profundezas do inconsciente e a uma inesgotável viagem e espontaneidade, naturalidade e sincronicidade.

A arte pode se portar como um ato de recriação do próprio eu em transição, nicho do exercício da liberdade, da imaginação, da lembrança e do futuro. Ela guarda segredos, mas pode revelar mistérios.

Pesava-me muito a vileza da vida.
Por isso me dispus ao ideal estético.
Melhor um verso.
Tirar os olhos do chão
e não tê-los ardendo
por  não conseguir sempre
dar ao coração o que o coração deseja.

        Desinstalei-me
(sem alarido).
Encontrei a paz
e percebi que não há nada
que subjugue a ternura
de um olhar … (5)

O instinto criativo pode ser sentido como impulso para a totalidade. A verdadeira tarefa humana criativa talvez seja esta mesmo: conseguir ser o que se é de fato.

Há bons anos trabalho com psicologia e arte e trago no coração alguns pressupostos que justificaram e continuam justificando
esta iniciativa:

1.  A vida na contemporaneidade prima pelo excesso de desconfortos e as crises existenciais podem ser enfrentadas por diversos saberes.

2.  Conquistar o equilíbrio implica, além do conhecimento psicológico do que gera esse descompasso, a experimentação de recursos leves e delicados que podem abrir uma janela para investir na vontade de viver melhor, sabendo que nada é permanente, tudo pode ser refeito.
Vida pelo que não entendo e pelo desejo de espalhar sementes que
desembocam em frutos, preferencialmente, elegantes.

Amigos não me faltaram como Cervantes, Flaubert, James Joyce, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Clarice Lispector, Adélia Prado e o mais querido, Mário Quintana que me garantiu que além do mundo da claridade e o da penumbra,
existe um outro,o do encanto.

A minha palavra soará pelos corredores  do cotidiano mais limpa que o sonoro canto do passarinho
que, incansavelmente, acorda antes da hora.

E, na velocidade do som, minha boca buscará Deus para o beijo de quem volta,  afirmando sabiamente que gosta mesmo
de cantar com a alma e contar vagalumes na noite (3)

Os chineses dizem que “ a água procura o úmido e o fogo pro-
cura o seco”. A afinidade conecta tudo espontaneamente. Sem  es-
forço algum promove a intimidade.
A arte corre por dentro de mim como a água do rio corre para
o mar. Sem forçar nada. Desliza sobre as aparências, não confronta,
não discute com o que encontra pelo caminho…flui…apenas.

Referências

(da autora – poemas )

1. Livro  : Um piscar do infinito
2. Livro : Remanso e outros recantos
3. Livro : Primeiro pôr-do-sol
4. Livro : Diálogo do desconhecido
5. Livro : Um piscar do infinito

(Clarice Lispector)