O encanto da música no silêncio

Por Maria do Céu Formiga de Oliveira

Lá fora, possibilidade distante do desejo de descanso. Dentro, clima e luminosidade preparados para acolher irrecuperáveis apaixonados pela solitude, pela docilidade do papel escrito, que indica o caminho do limo das pedras, insinuação escorregadia e afável para pés pequenos.

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Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. Como eu gosto desse tipo de lugar! Fico sempre aliviada da loucura da vida, abrigada no silêncio de uma sala de estudo. Aqui é um bom lugar para receber o início da noite e, enquanto meus olhos tocam em passado e poesia, meu coração reedita discretamente Beethoven em sua Sonata ao Luar. Notas como fonemas, numa vibrante declaração de amor que segue insinuando um pretérito mais que perfeito.

O silêncio evoca sempre uma melodia, que me revela, como nessa obra que o mestre dedicou à sua amada aluna de piano, Giulietta. Amor que não vingou, melodia que respira a doçura nostálgica de uma serena noite de luar, e que faz acordar em mim as estrelas que ficaram pelo caminho num céu coberto de nuvens.

A arte me ensinou a falar de afeto quando eu, tímida demais, não tinha corpo que pudesse revelá-lo. Um corpo sem voz. Sutil e secreto. Música e poesia como palavras que caíam das árvores quando, por estradas novas, passava meio encolhida. Palavras que desciam feito frescor da madrugada sobre meus ombros encurvados pelo medo de envelhecer antes de me encantar com tudo a que eu tinha direito.

Sonoridade no meio do sussurro sempre transitou pelos andrajos da minha humanidade como a abelha sobre a natureza ainda em intenção, ou como o canto do pássaro perto do amanhã.

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Que lugar é este que me convida a estar tão intensamente dentro de mim? Lugar delicado como pétalas de lisianthus. Lugar simples, discreto e democrático. Uma biblioteca. Espaço em que me sento onde alguém já sentou um dia e já sonhou ou chorou sem ser visto.

Na Avenida Rio Branco, a lua chega pelas frestas dos vitrais. Fico brandamente intensa e inteira no meio dessa clandestinidade tão à-toa.

Sempre que viajo, procuro esse canto. Tenho registros inesquecíveis dessa natureza.

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Lembro-me da alegria que me tomou quando encontrei a biblioteca do navio Blue Dream. Parece que o outro continente que ficava bem mais adiante, destino daquela viagem, entrando naquela sala belíssima, me presenteava com o fascínio da surpresa.

Mais, muito mais que na velha Europa, as melhores cenas do mundo eu colheria ali mesmo. Estantes de vidro transparente acompanhando as paredes, mesas e poltronas para leitura de conforto inquestionável, livros de diferentes temas e tamanhos, cores e origens diversas, arandelas de cristal pelas laterais, afresco no teto reproduzindo um pedacinho da Capela Sistina, enquanto pelas pequenas escotilhas se via o mar tão sem dono, tão distante do leito do rio que, não se cabendo em si, extrapola, fazendo nascer uma terceira margem. Lá fora um mar tomado de saudade e mistério, como a Sonata de Beethoven esperando o milagre da hora de reabraçar.
Que tempo precioso passei nesse cantinho! Tempo de notícias calmas, de falas miúdas e olhares demorados.

Eu preciso desse instante amansado para não me sentir fora do tempo, sem lugar para ficar.

Anos atrás, acolhi o finalzinho da tarde numa das salas de leitura da Biblioteca Britânica, folheando Tolkien e C.S. Lewis, e a viagem ganhou fôlego monárquico, me senti uma princesa no coração nublado da Inglaterra.

Esse é o meu jeito de atravessar espelhos. Para agradar a Deus não faço renúncias, nem sacrifícios. Ouço Beethoven e acompanho a paciência da caneta sobre o papel… que é feito paixão, tem vida breve e intensa. Contemplo, gosto de contemplar, mas é por pouco tempo, o amor me toma logo.

Amar faz o tempo correr ao contrário. Escrever é amar, é estar à disposição da sedução da sonata e dos sonhos. Que não me faltem papéis afáveis como pétalas brancas de lisianthus, nem Beethoven, nem uma saletinha de estudo, porque, na qualidade de irrecuperável apaixonada pela solitude, ai de mim sem essas delicadezas.