Pintura: os riscos de quem inala aguarrás

E-mail enviado por uma leitora:  

“Preciso de uma orientação. Estou reformando minha casa e pintei durante três dias uma parede com tinta acrílica dissolvida com aguarrás. Nos três dias, tive dor de barriga, e, do segundo para o terceiro dia e até hoje, o que completa mais ou menos um mês e meio, estou sentindo palpitações fortes todos os dias. Pesquisei um pouco sobre os sintomas, e cheguei à conclusão que pode ter sido por causa da inalação da tinta Mesmo com pouca inalação, pode ter dado alguma arritmia? Aguardo seu retorno.”

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Resposta: Aguarrás é uma combinação de hidrocarbonetos alifáticos voláteis que pode ser usada com propostas recreativas ou, de acordo com o caso relatado, com proposta profissional/ocupacional.

Clinicamente, nos casos de exposição aguda, o quadro de intoxicação tem início rápido; a recuperação dos efeitos agudos também costuma ser rápida. Sensações de euforia, desinibição comportamental e taquicardia podem ser seguidas por náuseas, vômitos e confusão mental. A exposição por longos períodos às substâncias desse tipo pode induzir neuropatia periférica (formigamento dos membros inferiores ou mesmo superiores), arritmias cardíacas (por vezes, fatais), danos aos rins, fígado, olhos, pulmões e funcionamento cerebral (prejuízos da memória, atenção e inteligência global).

Sempre quando alguém manipula solventes voláteis durante atividades ocupacionais/profissionais, deve estar alerta para as possíveis consequências nocivas da inalação dos mesmos e do contato da pele com tais substâncias. Luvas e máscaras protetoras específicas para o manuseio profissional/ocupacional devem fazer parte do arsenal de medidas protetivas individual.

Basicamente, existem três principais formas de exposição aos hidrocarbonetos voláteis:

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a) profissionais que trabalham utilizando tais produtos;

b) pessoas (especialmente adolescentes e adultos jovens) que fazem uso recreativo, com a intenção de atingir estados de euforia ou desinibição;

c) crianças que inalam/ingerem acidentalmente os hidrocarbonetos voláteis.

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De uma forma geral, os hidrocarbonetos voláteis (inalados) são absorvidos principalmente pelos pulmões, chegando rapidamente ao cérebro. Como o cérebro é fortemente composto por lipídios (gorduras), os solventes encontram um terreno fértil para atuar. Tais substâncias provocam alterações em diversos sistemas depressores e excitatórios cerebrais (sistemas gabaérgicos e glutamatérgicos, respectivamente), bem como atuam nos sistemas neuronais relacionados com a recompensa (sistema dopaminérgico). Outrossim, uma miríade de ações sobre outros sistemas de neurotransmissores e sobre a estrutura cerebral tem sido vislumbrada entre usuários de hidrocarbonetos voláteis.

A inalação dos hidrocarbonetos voláteis altera de forma rápida o funcionamento dos chamados canais de sódio e potássio cardíacos, promovendo diferentes formas de arritmias, inclusive fatais. Dito isso, a exposição continuada ou crônica prejudica de forma incisiva a atividade elétrica cardíaca, bem como pode causar alterações estruturais. Amostras de tecidos cardíacos obtidos de usuários recorrentes de hidrocarbonetos voláteis têm mostrado edema (inchaço) de parte do coração, áreas de necrose, de fibrose e ruptura de fibras musculares.

A morte súbita decorrente da inalação dessas substâncias pode ocorrer; entretanto, o uso continuado pode provocar alterações cardíacas e cerebrais persistentes. De qualquer forma, um estudo realizado com mulheres expostas acidentalmente, durante três dias, à inalação de hidrocarbonetos voláteis, mostrou que as mesmas, três anos depois, ainda demonstravam déficits na memória e no raciocínio.

Usuário de curto período: infarto do miocárdio

É importante notar que mesmo a inalação por tempo curto pode “sensibilizar” o funcionamento cardíaco à ação de substâncias endógenas (as catecolaminas), provocando arritmias (especialmente taquicardia ventricular e fibrilação atrial). Episódios de infarto do miocárdio, devido ao vaso-espasmo (contração das artérias do coração), têm também sido vistos entre usuários de curto período.

Outrossim, o uso agudo dessas substâncias pode provocar reações inflamatórias nos pulmões, redução da capacidade ventilatória e, mais raramente, episódios de hemorragia.

Você relata exposição ocupacional durante três dias aos hidrocarbonetos alifáticos voláteis. Como escrito acima, no caso de falta de proteção correta e adequada, consequências negativas para os diferentes sistemas orgânicos podem ter ocorrido. Tendo em vista que a sua principal queixa está relacionada ao funcionamento cardíaco, você deve, de forma imediata, procurar um cardiologista, revelar toda a sua história de exposição aos solventes (sem omitir quaisquer detalhes) e contar a respeito dos seus sintomas com a finalidade da melhor identificação do problema.

Atenção!
Este texto não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico e não se caracteriza como sendo um atendimento.