O que trazer de uma viagem?

Por Maria do Céu Formiga
 
Sentada no banco marcado pelo tempo, ao lado do James River, em Richmond, cidade mais romântica do nordeste da Inglaterra e já tão distante da tensão entre ingleses e bretões,  tendo cerejeiras em tom sulferino  por todos os lados. Foi exatamente aí que me lembrei do filme “Sonhos” de Akira Kurosawa.

O vento soprando leve  e permitindo que algumas pétalas passassem bem pertinho dos meus olhos  até minutos atrás um pouco descaídos  me fez,  protegida pelo sobretudo meia-estação, no tom das cerejeiras,  voar por aqueles campos com a sensação de que não só as mazelas do cotidiano  deveriam nivelar  o  ser humano, mas o encanto também. E eu segui com meu olhar   indefensável e abraçando tudo o que pudesse oferecer doçura.

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Um encontro até então inacontecido  se deu naquele banco. Desejei dormir no meio daquela gratuidade sem limite  e sonhar com as sutilezas que poderiam incorporar ao imaginário pessoal.

Silêncio e serenidade, ambiência perfeita.

Contemplando a sincronicidade  dos praticantes de remo no manso James, numa hora dourada e vespertina, nem reparei que pelas frestas da desrazão, ali mesmo, eu trocava de pele  e pressentia a infinita felicidade de não mais dominar a vida  pelo medo de perdê-la.

Horas eternas. Sei que momentos desta natureza podem até não curar os arranhões do peito, mas seguramente, o enche de gratidão porque mostram a língua aos frutos das desimportâncias.

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Caminhar por Richmond, me fez viver o que, discretamente, foi acolhido pelos sentidos como nas imagens lúdicas tão ternamente criadas por Akira.

Existem lugares que sugerem que você lá já esteve um dia, daí a sensação de estar em casa. Lugares que anulam constrangimentos  e favorecem  recordações à  moda antiga. Fotografei  como quem cria  adornos para reverenciar o momento  e depois cometi um verso  que pudesse aludir  à soberania  do prazer vivido.

Gosto muito de viajar, mas não seria nômade … tenho necessidade de voltar e pertencer. Viajar  me ajuda a  burlar os desertos da mesmice,  encher  os olhos de  neblina  calma  e seguir clandestinamente cheia de destino.

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