O que sua imagem refletida no espelho revela sobre você?

Por Aurea Caetano

Na introdução a seu livro de memórias “Solo de Clarineta”, Érico Veríssimo escreve sobre a conversa cotidiana com seu amigo mais íntimo que não é senão ele mesmo visto através do espelho.

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A cada manhã, há um encontro entre o real e o imaginário, quem o olha do outro lado não é mais ele mesmo, mas um outro agora diferente. A cada dia, terá de se confrontar com essa imagem, olhando para si mesmo numa constante atualização da percepção consciente.

Quem sou eu afinal? Espelhos existem desde o início dos tempos, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança reflexos onde ele poderia se ver. Narciso se apaixona, sem saber, pela própria imagem refletida. Perseu vence a Medusa confrontando-a com a própria imagem espelhada. Espelho, espelho meu, existe no mundo alguém mais belo que eu?

O espelho não traduz, registra aquilo que o atinge, da forma que o atinge. Ele diz toda a verdade de modo desumano… o cérebro interpreta os dados fornecidos pela retina, o espelho não interpreta os objetos.  A discussão acerca do que é “a verdade” passa, no mínimo, por estas duas questões: a percepção e a interpretação e ambas acontecem em um contexto de dualidade, seja na relação com o outro externo, o diferente de mim, seja na relação com o outro interno, ou o eu que reconheço como meu.

Emoções e sentimentos

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Matéria-prima de nosso trabalho cotidiano, as emoções e sentimentos que acompanham estas discriminações, nos confrontam com o real e o imaginário, ou com o que chamamos de “projeções”. Trabalhamos com o que nosso paciente nos conta a respeito dos relacionamentos importantes, como vê e vive sua vida e somos muitas vezes chamados a “tomar partido” de forma consciente ou muitas vezes, quando tocados em nossos pontos cegos, de forma inconsciente.
    
Ao relatar um confronto constante com o parceiro/a o paciente pergunta, por exemplo: mas você não acha que tenho razão?  Ou já em uma visão mais crítica: como é que você sabe que o que conto a respeito de meu parceiro/a é a verdade? Não sei, e não saberei nunca. O que sei é que esta é a verdade para aquela pessoa específica, a respeito daquela questão específica, naquele momento e esta é a matéria de nosso trabalho. Questionar, olhar, lançar luz, amplificar, buscando ver aspecto não vistos, não reconhecidos, nuances que sugerem limites antes não considerados. Poder assim ampliar nosso conhecimento a respeito de nós mesmos e do mundo no qual vivemos.

Mas ainda, pensando junto com Érico Veríssimo: será que existe algo como o reino da verdade ou será ela apenas mais uma das criativas construções humanas?

‘Mas a coisa não é assim tão simples e nítida.’- observa o Outro – ‘eu sei, eu sei’- respondo em pensamentos. ‘Mas vamos adiante companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade.’ O fantasma foca em mim os seus olhos secretamente céticos e murmura ‘Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?’ Ambos encolhemos os ombros.

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