Como sair de uma relação abusiva de anos

Muitas vezes a pessoa não tem como sair de uma relação abusiva, que pode durar anos, décadas… pois não percebe que está sendo manipulada, abusada…

Ele se declarou muitas vezes para mim, até depois das brigas mais recentes. Ele diz que me ama e que tudo que faz é pelo meu bem. E aí, isso procede?

Um bom tempo atrás atendi em psicoterapia uma moça que experienciava sentimentos confusos acerca do “namorido”. Carla e Marco (nomes fictícios) uniram-se quando ela completou 19 anos, ele estava com 34. Ele foi seu primeiro namorado e com esse homem ela descobriu o que nomeavam como amor.

Também descobriu que não conseguia alcançar orgasmos. A cada tentativa sentia uma frustração imensa, ela se submetia ao sexo na esperança de agradar ao rapaz, ainda que tudo se tornasse progressivamente mais aversivo para ela. Marco a chamava de sexualmente incompetente, e a estimulou a fazer terapia sexual para aprender a relaxar e descobrir o prazer. Não lhe foi possível tirar benefício da terapia, logo o leitor entenderá o porquê. Marco dizia que ela era pouco competente também fora da cama, no mundo corporativo, por exemplo. Trabalhavam em departamentos distintos da mesma empresa, ele num nível hierárquico superior ao dela. No mínimo haveria influência do fator senioridade para explicar o cargo de maior destaque que ele ocupava.

Marco e Carla tiveram brigas feias, seguidas por reconexões ardentes. Ela recebia, no dia seguinte às brigas, súplicas pela paz conjugal, dúzias de flores com bilhetinhos de amor. Neles, declarações de que Carla pertencia a ele, de que ele só perdia a paciência porque ela não o entendia, que Carla não seguia o que ele sabia ser o melhor para ela. “Faço tudo isso por te amar muito”, dizia Marco.

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Até onde pode chegar uma relação abusiva?

Por três vezes, nos últimos dois anos, Carla escapou de morrer. O rapaz apertou o pescoço dela com força, em outra ocasião lhe empurrou e, na terceira vez, foi sufocamento com travesseiro.

Estou resumindo aqui uma história de duas décadas de opressão, cujo núcleo central é a longa relação abusiva vivida por Carla. O que levou esta moça a se sujeitar a tantos abusos e humilhações?

O que está por trás de uma relação abusiva?

Múltiplos fatores entram em cena. Escolhi uma vertente, não necessariamente mais relevante do que as demais: o poder das palavras sobre cada um de nós. Notem que Marco atrela alguns problemas do casal a supostas explicações. Carla não alcança o orgasmo porque tem problemas, ele diz. Ele a ama demais e só perdeu a paciência naquelas ocasiões porque ela não faz o que ele sabe ser bom para ela.

Ou seja, é dela a culpa pelo comportamento agressivo de Marco, alguém que a ama tanto a ponto de declarar que ela lhe pertence, tal qual o carro, móveis ou outro bem. Ela não está em tanto destaque na carreira porque não segue os conselhos dele. Resumindo: ela tem muitas falhas e ele, todas as soluções para os supostos problemas de Carla. O ponto mais importante disso tudo, é que ele declara que a ama, mesmo com tantos defeitos. As falhas dele, como agressão verbal e física, são todas culpa dela. Flores, cartinhas de amor e pedidos de desculpas parecem suficientes para reverter os danos.

Nascer em uma família rígida, autoritária e cheia de regras foi, na verdade, uma das razões pela qual Carla casou tão cedo e sem experiência anterior na área sexual e no amor. Ela simplesmente se envolveu com quem lhe deu atenção, jurou amor eterno e parecia ser tão mais vivido do que ela, alguém que ela admirava e lhe prometeu amor e proteção. Mãe submissa, pai autoritário, toda palavra dele era lei para dentro de casa. Marido mais vivido, dono da verdade e acidamente crítico foi a escolha possível.

E como um sujeito assim mantém o poder sobre a esposa? Um dos fatores é enfatizar verbalmente o quanto a ama, usar um vasto repertório verbal de declarações de amor misturadas insidiosamente a críticas e frases de desvalorização da parceira, palavras que minavam a autoconfiança da minha cliente. Assim, ofertas verbais de suposto amor disfarçam o peso de todas as atitudes inadmissíveis de Marco.

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Estratégias que podem ajudar

Uma das estratégias que usei para ajudar Carla foi lhe fazer perguntas. Há quanto tempo ele e você estão na empresa? Com a tua idade que posição ele ocupava? Quanto tempo ele levou para chegar ao posto que ocupa hoje? O que teus gestores falam de você? Comparada aos teus pares etários, como tua carreira evoluiu nesta empresa, como você se posiciona hoje?

Como são os momentos de intimidade sexual? Há preliminares? Há expressões de intimidade e vulnerabilidade recíprocas? Ele se interessa em descobrir o que você gosta ou deseja experimentar? Você já se masturbou? Alcança prazer assim? Por que ele quis que você fizesse terapia sexual sem o envolvimento, compromisso direto dele? Sexo é como uma dança de salão, envolve o par…

Mais indagações que eu dirigia a ela: será que brutalidade verbal e física é a regra entre pessoas que se amam? Que amor é o de quem critica, bate, humilha? O amor tem mesmo essa característica? Quais as principais manifestações do amor? O amor significa posse ou poder? Como assim?

Foram muitas conversas, com perguntas deste naipe entremeando a prosa. Eu dirigia o olhar de Carla para o que Marco dizia, em oposição a uma análise das ações dele. A percepção da discrepância cresceu exponencialmente.

O que uma pessoa faz é muito mais importante do que o que ela diz

Preste muito mais atenção no que uma pessoa faz do que no que uma pessoa lhe diz sobre quem ela é ou o que fará. Palavras são sopradas ao vento, atos deixam marcas.

Quando já separada, Carla iniciou um namoro e descobriu, já na primeira relação íntima, que ela era bastante sensível aos muitos carinhos, palavras doces e ardidas, estimulações todas providas pelo novo parceiro. O prazer chegou de mansinho, naturalmente, sem dificuldade alguma. Frígida uma ova. O ex-namorido era muito incompetente. Só isso. Tudo isso.

Palavras iludem. Vejam certos políticos: prometem a, b, c. Entregam x, y, z. Preciso dizer mais?

É psicoterapeuta na abordagem analítico-comportamental na cidade de São Paulo. Graduada em Psicologia pela PUC-SP em 1981, é Mestre e Doutora em Psicologia Experimental pela IP-USP. Atua como terapeuta e supervisora clínica, é também professora-convidada em cursos de Especialização e Aprimoramento. Publicou dezenas de artigos científicos, e de divulgação científica, além de ser coautora de livros infanto-juvenis.

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