Aprenda a preparar a carne no ponto desejado

por Rosa Fonseca

– Meu hambúrguer mal passado, por favor.

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– O ponto da casa já é mal-passado, senhora.

Foi amor à primeira vista. Nunca esquecerei aquelas palavras melodiosas “nosso ponto já é mal passado…”. Ou aquela imagem: um delicioso hambúrguer cor-de-rosa se aproximando, muito suculento, macio, perfeito. Seu molhinho natural no pão é melhor que qualquer ketchup. Até mesmo Heinz – e eu adoro Heinz.

Já vi discussões acaloradas sobre o ponto certo da carne. Na cozinha clássica francesa, os três pontos da carne não são bem-passado, ao ponto e mal passado. São bleu, saignant e au point.

Bleu, em francês, significa azul. Quer dizer que a carne fica bem mais que “rosinha”, fica violeta, praticamente crua, só com uma casquinha tostada por fora. Como alguns atuns e salmões da cozinha asiática.

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Saignant é um pequeno passo adiante do bleu. A carne fica muito mal passada, bem vermelha, intensamente sangrenta. Naquele ponto em que, ao ser cortada, enche o fundo do prato de sangue. É o ponto preferido dos franceses. Vai ver que é por isso que estrangeiro adora churrascaria: nelas, a carne sempre sangra.

Quando for à França, não se engane: au point não é falso cognato de “ao ponto”, mas poderia ser, já que é muito diferente do ponto brasileiro. Au point equivale à nossa carne mal passada. Não é o ponto preferido dos franceses, mas tem sempre um turista que pede.

Se quiser mesmo uma carne “ao ponto” você precisará pedir seu steak bien cuit, o que é uma heresia. Como o mal-humor dos garçons e chefs francos é mundialmente famoso, não se assuste se seu pedido foi negado, ignorado ou você for convidado a se retirar.

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Norte-americanos também levam o ponto da carne a sério. Apesar do popular trash-food, a cozinha estadunidense reserva surpresas como a gastronomia crioula e o maravilhoso mundo das steaks houses. Mesmo nas franquias que ficam no Brasil, é possível receber um filé meticulosamente mal passado, ainda que você tenha pedido ao ponto.

São pistas de que, talvez, o ponto certo da carne seja o mal passado – quando ela fica necessariamente mais macia e suculenta e é possível perceber seu sabor natural. Treinando o paladar, dá para distinguir mignon de contrafilé e alcatra a olhos vistos, desde que mal passado e com pouco ou nenhum sal. Se a carne for bem passada ou muito salgada, nem um gourmand com faro de cão notará diferença.

Trabalhei com um chef que dizia que quem só consegue comer carne passada é vegetariano e não sabe: “são como um gay enrustido: eles odeiam carne, só não têm a coragem de admitir.”. Sei que a afirmação soa polêmica. Mas recomendo aos amantes da carne queimada comê-la mais ao ponto, o quanto puderem. E prestar atenção em como será mais leve e saborosa.

Nossa cultura da carne passada tem uma razão. Sou de uma época em que se ensinava na escola a passar bem as carnes (especialmente de porco ou caça) ferver leite e água e lavar bem as frutas antes de ingerir como questão de higiene.

No livro escolar da minha irmã, nove anos depois, lá estava, registrado nos livros (e na mente) para sempre, como profilaxia de diversas doenças: “cozinhar muito bem as carnes”. Pena que nada profilático tenda a ser gostoso. Pense em própolis ou óleo de fígado de bacalhau. Bons para prevenir doenças, não para lamber os beiços. Se não há alternativa, paciência. Mas no mundo de hoje, com leite pasteurizado, água mineral engarrafada e carnes de boa procedência, com selo de inspeção sanitária, fresquinhas e embaladas a vácuo , não há porque não se render às maravilhas de um filé sangrando. Só o problema das frutas não melhorou. Os livros de hoje devem mandar lavá-las com esponja e detergente…

Para preparar seu filé, recomendo a aquisição de um termômetro de cozinha (dos gadgets gourmets, poucos são tão úteis). Separe uma peça com cerca de 3 cm de altura de um corte bom para grelhar como filé mignon, contrafilé, alcatra, fraldinha ou maminha. Pedaços finos são mais fáceis de passar do ponto e as chamadas “carnes de segunda” são maravilhosas para cozer e ensopar, mas quem as tortura com um batedor de carne está sendo um cozinheiro de segunda.

Use uma frigideira, grelha ou chapa bem quente, fumegando. Mesmo que a superfície seja antiaderente, unte com óleo ou azeite para melhor condução da temperatura. Se a carne estiver pingando, seque-a em um pano limpo. Além de fazer o óleo borbulhar (acarretando em sujeira e riscos de queimadura), a água diminui a temperatura de cocção. Queremos um steak grelhado e brilhante, não branco e cozido.

Não tempere a carne!!! É um pecado deixar um belo corte fresco curando no sal, no limão, alho ou temperos prontos. Simplesmente não use. Os franceses apenas salpicam sal (pouco) e pimenta do reino moída na hora (pouca) sobre o filé, já pronto, na mesa. Isso porque, por um processo de osmose, o sal seca a carne. Uma carne salgada não ficará saignant. O tempero mascará seu delicado sabor.

É preciso temperança para encontrar formas de dar sabor extra aos grelhados. Ótima saída é fazer sais especiais, moendo sal grosso no liquidificador com alecrim, orégano, cominho e até anis. Outra solução é aromatizar o óleo a ser usado, aquecendo-o levemente na frigideira com alho amassado ou raspas de limão, antes de finalmente usá-lo para grelhar. Gaúchos usam galhos de ervas frescas para salpicar sal grosso na carne enquanto grelha.

Para obter uma carne lindamente macia e suculenta, é preciso criar uma crosta em torno do filé, que protegerá o interior de pingar ou aquecer demais. Observe o que acontece com um steak quando vai ao fogo: de baixo para cima, aos poucos, a coloração vermelha vai dando lugar a uma cor terrosa. Quando essa cor estiver na metade do filé, vire-o. Não tente virar precocemente, pois antes da carne criar crosta gruda fácil. Se sentir que ainda está grudada, espere um pouco. Não force, para não rasgar-lhe as fibras. Assim que a outra metade corar, retire do fogo e sirva imediatamente. Ao cortar, o resultado deve ser carne dourada nas beiras e rosa por dentro.

Nunca use garfos ou objetos perfurantes para lidar com a carne. Tudo o que você não quer é que os sucos internos vão pelo ralo. Utilize uma pinça, que é o acessório mais adequado, ou improvise com uma escumadeira.

Para carne au bleu, o tempo médio de cocção em fogo alto é de 1 minuto para cada lado. Se você espetar o termômetro, verá que a temperatura interna estará entre 50 a 54° C. Para carne saignant, o tempo é de 2 minutos de cada lado. Temperatura interna será de 55 a 59° C.

Para ter uma carne mal passada, grelhe por 3 minutos de cada lado ou espere até que o centro do filé esteja entre 60 e 64° C. Para chegar “ao ponto”, grelhe em fogo forte por 4 minutos de cada lado, depois abaixe o fogo e deixe por mais 5 minutos. A temperatura interna girará entre 65 e 74° C. A partir de 75° C a carne passou.

Aqui o leitor mais atento perguntará: “ao espetar o termômetro até o centro do filé, os sucos da carne não escorrerão?”. Sim, por isso é bom furar depois de já ter virado a carne (a gravidade ajudará) e esperar os minutos certos. Com o passar do tempo, você não precisará mais do termômetro. Acertar o ponto da carne é uma sabedoria que só a experiência traz.