O amor sob o prisma das canções – Parte II

por Regina Wielenska

No texto anterior, (clique aqui e leia), iniciei uma série em que abordo os padrões de comportamento na relação amorosa a partir de algumas canções.

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Hoje escolhi um clássico de Erasmo Carlos, Coqueiro Verde, cuja letra segue abaixo

Em frente ao coqueiro verde
Esperei uma eternidade
Já fumei um cigarro e meio
E Narinha não veio

Como diz Leila Diniz
O homem tem que ser durão
Se ela não chegar agora
Não precisa chegar

Pois eu vou me embora
Vou ler o meu Pasquim
Se ela chega e não me vê
Sai correndo atrás de mim

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O pano de fundo da letra: uma sociedade em transformação.

Conhecer o contexto sóciocultural do final da década de sessenta, quando a canção foi composta, ajudará a entender melhor meus comentários. Leila Diniz (1943-1972) é citada na música. Morreu jovem a atriz de 14 filmes e outras tantas telenovelas, vitimada por um acidente aéreo. Era musa da Banda de Ipanema, conseguiu chocar a Deus e a todo o mundo quando apareceu na praia, de biquíni, visivelmente grávida da filha Janaina, que teve com o cineasta Ruy Guerra, seu segundo companheiro. Por pouco tempo, e intensamente vivido, Leila inspirou mulheres, quebrou tabus, encantou moços e velhos. Mas também chocou segmentos conservadores da sociedade brasileira, que condenavam seus atos e palavras.

Naquele Brasil, da ditadura que se instalara a partir de 1964, pouco se podia falar de política. Mesmo com os meios de comunicação sob o crivo da censura e ameaça velada ou explícita de prisão, tortura e desaparecimento pairando sobre insurgentes, ainda assim firmava-se a militância de esquerda, na clandestinidade ou por meio de atos ousados de jornalismo e organização social (passeatas, atos públicos, reuniões).

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O semanário Pasquim fora fundado em junho de 1969 por Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral e logo recebeu contribuições de nomes importantes como Millor Fernandes, Paulo Francis, Henfil, entre outros. Inicialmente abordava assuntos de comportamento como sexo, drogas e feminismo, e logo enveredou pelos domínios da oposição à ditadura, pela via das palavras duras, ou por metáforas, humor e ironia.

O machismo, nesse fervilhante meio, começava a se ver às voltas com os incipientes movimentos de libertação feminina. Fumar era comportamento mais aceito socialmente do que nos dias de hoje, e simbolizava virilidade masculina e elegância das mulheres.

E agora, vamos à canção.

A letra sugere um homem injuriado porque esperou Narinha ao pé do coqueiro e ela não apareceu (acaso ou não, trata-se do mesmo nome da esposa de Erasmo, falecida tragicamente nos anos 90). Eu me pergunto: quanto tempo se leva para fumar quase dois cigarros, com um intervalo de cinco minutos entre ambos? Certamente, menos de meia hora.

Se marcássemos um encontro numa via pública e a pessoa se atrasasse (em eras sem celular), quanto seria razoável esperar? Acho que a maioria das pessoas esperaria o amigo ao menos por 30 minutos… Aparentemente, não foi o que ocorreu na história.

Convenhamos que telefones públicos eram escassos, celulares existiam só na ficção científica. Poucos tinham carro e o transporte público nos deixava a ver navios. Puxa vida! Será que Narinha não poderia ter sido atropelada pelo bonde em Santa Teresa ou por um ônibus na Av. Getúlio Vargas? Isto se ela não tivesse sido presa por agentes da polícia política, com ou sem “culpa no cartório”. Não encontramos sequer um pingo de consideração ou zelo pelo bem-estar da moça…

Frustrado em seus intuitos provavelmente eróticos, o fumante faz uso de Leila Diniz para justificar seu comportamento de prima donna: o sujeito sai do local dizendo, impávido, que agora ela “não precisa chegar”. Pois eu du-vi-do que Leila houvesse afirmado o que ele atribui a ela, não faz sentido algum esta suposta apologia aos homens durões, insensíveis, no relacionamento com uma mulher.

Esperar não valia a pena, mais conveniente seria ler OPasquim em casa, mas precisava ser bem naquela hora? Leitores do semanário, com exceção dos agentes da repressão, eram geralmente pessoas politicamente afinadas com os criadores do semanário, com postura de esquerda, liberalizante, moderno.
Não ocorre ao protagonista investigar com algum conhecido onde Narinha pudesse estar. Poderia ligar no comércio mais próximo à casa dela, pra saber se alguém poderia chamá-la ao telefone. Claro que estou com laivos de ficcionista, supondo que Narinha morasse longe e não tivesse telefone em casa, coisa comum naqueles tempos.

O amor reciproco, e não me refiro a estados de fixação obsessiva, envolve um certo grau de tolerância a falhas mesclado a uma dose de zelo pela pessoa amada. Não encontrei isto na canção.

Mas algo me deixou intrigada: “Se ela chega e não me vê vai correndo atrás de mim”? Será que a moça foi quem o acostumou a esse padrão de espera? Ela não chegar na hora e depois vai correndo ao encontro do moço para se explicar? É assim que ele se sente importante e desejado? Parece que ele não precisa fazer muita coisa, exceto esperar triunfante pela volta de Narinha. Como será que o desdém e presunção se formaram?

Outra hipótese é que ele, na vida, foi acostumado a ter tudo pronto na hora, conforme seu gosto. Narinha de nada sabe, precisou se atrasar (uma única vez) e agora será surpreendida com a braveza e intolerância de seu suposto amado. Mas e se Narinha, depois de se atrasar vinte e cinco minutos, ficasse até preocupada por não ter conseguido encontrá-lo, e só bem depois se desse conta de que seu amigo ou namorado é um sujeito mimado, que só pensa em si?

Eles estavam em desencontro e as falas do rapaz me fizeram crer que não havia mais futuro para o relacionamento da dupla. O coqueiro possivelmente virou ponto de encontro para outros enamorados…

Nenhuma certeza me trouxe a canção, exceto a de que nela residiu um amor vaidoso e escasso. A título de esclarecimento, admiro muito Erasmo Carlos, como compositor e intérprete. Mas o rapaz desta letra e sua desaparecida amada (?) mereciam um olhar psicológico atrevido, quiçá insolente.