A criança que se vitimiza

por Ceres Araujo

Durante grande parte do primeiro ano de vida, o ser humano é colocado como o centro das atenção e centro dos cuidados do ambiente. Sem pais suficientemente bons, o bebê não consegue se desenvolver dentro dos padrões considerados desejáveis.

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Até o segundo ano de vida, o bebê vive com uma sensação de onipotência, que é um dos fundamentos da autoestima. Mas a partir dessa época, ele também passa a viver o contrário: a sensação de impotência, ao perceber que ele é menor que muitos outros, que não tem tanta força, que tem que fazer o que os outros determinam, etc.. É no equacionar da onipotência original, com a impotência que passa a ser vivida, que o ser humano desde essa época, começa a adquirir suas potências, isto é, as competências que precisa desenvolver constantemente ao longo de sua vida.

Enfrentar e aceitar os limites impostos, adiar satisfação de necessidades, tolerar esperas, aprender a obedecer, aguentar saudades,  são exigências para a adaptação ao mundo dos outros e para crescer como ser civilizado. Entretanto, muitas das crianças, nos dias de hoje, não estão passando por esses aprendizados de vida e não estão adquirindo competências tão necessárias ao crescimento, como entre outras: autonomia, *resiliência (veja aqui), consciência dos próprios recursos internos.

A contemporaneidade ressalta os direitos dos filhos e os deveres dos pais, exatamente o contrário de décadas atrás. Decorre que nos dias de hoje, os pais tendem a ser movidos por culpa em relação a seus filhos. A mãe que trabalha fora de casa, os pais que viajam a trabalho ou por lazer, os pais que privilegiam também seus outros papéis sociais além do papel de pais,  vivem culpa por não atenderem o tempo todo seus filhos.

A simples possibilidade de pensar que os próprios filhos possam viver frustrações, estarem carentes ou negligenciados por momentos, gera em muitos pais imensa angústia, pena de seus filhos e necessidade de muitas reparações. Sentir pena de alguém é vê-lo como vítima. Agindo assim, os pais reforçam a tendência à vitimização.

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Vitimizado no dicionário significa aquele que é ou foi feito de vítima. O desejo de ter os pais junto a si, normal para qualquer criança, se transforma em necessidade, que tem que ser satisfeita de qualquer forma e essa necessidade se transforma em direito, que passa a ser exigido dos pais. Um exemplo é a criança que exige que o pai ou a mãe brinque com ela todas as horas do fim de semana, por eles ficarem trabalhando fora de casa os dias úteis da semana.

Na família, quando a criança manda, festas são festas de crianças, viagens são para parques temáticos ou resorts preparados para os pequenos, cinemas, ir ao cinema só para desenhos animados. Pais, sentindo-se culpados, se submetem e acabam exaustos, sem poder reclamar até para eles mesmos. Muitas vezes a conjugalidade fica ameaçada pela falta do seu exercício.

Filhos de pais separados, tendem muito à vitimização, transformam-se em coitados, culpando os pais eternamente pela adversidade vivida, como se as pessoas dos pais não tivessem direito a ligações amorosas mais saudáveis e como se nos dias de hoje não existissem tantas crianças em famílias destituídas e reconstituídas. 

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A tendência à vitimização é um fator relevante para prejuízos no desenvolvimento psicológico de uma pessoa. Crianças, nas quais essa tendência é reforçada por seus pais, na maioria das vezes de forma inconsciente, carregam-na ao longo da vida. Transformam-se naquelas pessoas que nunca lidam com as consequências de seus atos, que sempre se colocam como vítimas dos outros ou dos acontecimentos, que estão sempre justificando suas insuficiências por circunstâncias externas a elas, que constantemente estão cobrando dos outros.

A pessoa que não age para buscar satisfazer seus desejos, que espera que o outro ou o destino resolva suas necessidades, que fica se lamuriando ou culpando o outro por algo que ela é responsável, é alguém que se torna desagradável  ao contato, “pesada” ao convívio, tenha a idade que tenha.

Tensões, insatisfações, frustrações, decepções, adversidades constituem o cotidiano da vida. Enfrentá-las é desvendar diferentes oportunidades, é se tornar mais forte, mais resiliente. É preciso sempre lutar para satisfazer desejos, ainda que eles tenham que ser adiados. E a pessoa que se vitimiza não luta, fica sempre à espera que o mundo atenda às suas necessidades e às suas exigências.

 * Resiliência é a capacidade universal de superar as adversidades da vida e de ser fortalecido por elas