O amor sob o prisma das canções ? Parte III

por Regina Wielenska

No texto anterior, (clique aqui e leia), escrevi o segundo texto da série em que abordo os padrões de comportamento na relação amorosa a partir de algumas canções.

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Através de letras de canções, continuarei a discutir, por mais algumas quinzenas, aspectos de relacionamentos amorosos. Para esta vez escolhi a canção abaixo, tão bem interpretada por Paula Lima.

É Isso Aí
Composição: Sidney Miller

Preparei uma roda de samba só pra ele,
Mas se ele não sambar isso é problema dele.
Entreguei um palpite seguro só pra ele,
Mas se ele não jogar isso é problema dele

Isso é problema dele, isso é problema dele,
isso é problema dele. Esse problema é só dele.

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Tô cansada de andar por ai curtindo o que não é,
preocupada em pintar uma jogada que da pé.
Só que tem que eu tô numa tão certa que ninguém me diz
Quem eu sou, o que devo fazer, o que eu não fiz.

Separei um pedaço de bolo só pra ele,
Mas se ele não provar isso é problema dele.
Inventei na semana um domingo só pra ele,
Se ele for trabalhar isso é problema dele.

Comprei roupa sandália e sapato só pra ele
Mas se ele não usar isso é problema dele
Aluguei uma roda gigante só pra ele
Mas se ele não rodar isso é problema dele.

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Isso é problema dele, isso é problema dele,
isso é problema dele. Esse problema é só dele.

Dar e receber: processo delicado

Roda de samba, palpite seguro, bolo, folga do trabalho em dia útil, roupa, calçado, roda gigante. Todas essas são formas que a moça encontrou de agradar ao seu amado. Mas será que ele gosta ou precisa dessas coisas? Alguma vez eles já conversaram sobre os desejos e necessidades de cada um? O verbo dar pressupõe haver no outro a receptividade, a condição de acolher amorosamente o que lhe é ofertado. Aqui não encontramos isso, parecer haver descompasso entre o presenteado e a moça que lhe faz as mais variadas oferendas.

Ocorreu-me agora a história de um casal em situação similar. Ele dava à esposa jóias maravilhosas, as quais não traziam a ela qualquer prazer. O maior anseio dela era pela companhia daquele marido com o qual se casara há duas décadas. Seu sonho de consumo era passar de vez em quando uma tarde inteira com ele, de celular desligado, conversando de verdade, trocando carícias sem pressa ou obrigação. De namorado em começo de carreira, moço humilde e com algum tempo livre, ele se tornara um megaexecutivo. Sem notar, ele passou a valorizar cada vez mais o dinheiro e o poder arduamente conquistados, em detrimento da qualidade dos relacionamentos familiares. Se ela reclamasse, ele provavelmente não entenderia e se sentiria injustiçado. Na perspectiva do marido, todo o esforço era exatamente em prol da família, por que, então, eles se queixariam de tamanha dedicação profissional?

Há crianças saturadas de brinquedos, quando o que mais precisariam era de companhia, o olhar atento do educador, cheio de afeto e alguma disponibilidade.

Em suma, num relacionamento é preciso saber o que o parceiro quer e realmente necessita, para que depois eu lhe ofereça algo, e isto só funciona se ele estiver receptivo. Pra que insistir se o que ofereço pouco importa ao outro? Até quando se dá murro em ponta de faca? Aliás, quais razões levariam alguém a dar murro em ponta de faca?

Dar algo como disfarce do pedido de amor

Vemos que na canção a mulher se refere às recusas de fazer uso dos presentes como “um problema só dele”. Talvez, na verdade, seja problema de ambos.

Vejamos:

– Não é estranho alguém insistir em dar presentes que, de certo modo, são recusados? Ela parece pouco conectada às necessidades dele, ou não se deu conta que a relação com ele nunca existiu ou não existe mais, e por tal motivo perdeu-se o sentido dos presentes. Seria hora dela se questionar acerca do padrão de comportamento de ambos. E mais, talvez fosse bom ela renunciar ao seu jeito de agir, aproveitando a ocasião para observar melhor o que se passa com ela e como ele reagiria ao seu jeito, agora diferente, de agir.

– Pensando um bocadinho sobre o rapaz, fico a me perguntar por que ele não esclarece melhor seus motivos da recusa? Será que ele é esquivo ou dúbio na comunicação nas vezes em que poderia abrir seu coração para ela? Ou ele já tentou de tudo e a moça é absurdamente insensível até a palavras explícitas?

– Há quem sugira que devemos tratar aos outros como gostaríamos de ser tratados. Quem sabe dar presentes seja, para ela, um jeito de dizer ao parceiro que gostaria de receber dele algo especial, que a surpreendesse. Um jeito torto de pedir amor, resulta em soluções igualmente atrapalhadas.

– Segundo a letra, ela não sabe quem é, do que gosta e vive em busca de jogadas que beneficiem aos outros. Parece que sua definição de “eu” está unicamente conectada ao seu suposto relacionamento com um moço que pouco ou nada lhe corresponde. Talvez na história de vida dela predominaram situações nas quais não importava aos demais o que ela sentia, pensava, desejava. Importante seria, isso sim, agradar ao outro (pais, amigos, etc.). e assim ela cresceu como alguém disposta a “servir ao outro”, busca adivinhar desejos alheios de forma que seja aceita/amada, sem conseguir relacionar de verdade, em bases igualitárias.

– Ele parece existir sem se importar com sentimentos, dinheiro, tempo, dispêndios ou qualquer outro aspecto referente ao ato de receber presentes da namorada.

Uma inteireza se depara com outra: o surgimento do amor

Além disso, a cultura idealiza os casais, são comuns os discursos de que a pessoa só se completa quando encontra sua cara-metade, sua metade da laranja, sua alma gêmea. Por trás dessas palavras parece residir o conceito de que somos, necessariamente, adultos incompletos se não estivermos o tempo todos plugados no outro, conectados por meio de um invisível cordão umbilical.

A letra parece sugerir que ele não precisa dela, enquanto que a moça faz de tudo e um pouco mais para se manter conectada a ele. E assim continuam a viver situações diametralmente opostas. Relacionamento é combinação única, gerada pela comunhão entre indivíduos completos com interesses em comum e encantamento recíprocos, e não por uma convivência forçada, com base em histórias de vida problemáticas e mal elaboradas por aqueles que as viveram.

Em suma, estar em um relacionamento significa reciprocidade, seja na admiração pela pessoa amada, na aceitação da individualidade do outro ou na comunicação aberta, respeitando-se os limites emocionais de cada um. Um projeto amoroso precisa de dois para ser construído e basta uma das partes não mais se dedicar ao cultivo do relacionamento que a coisa desande sem piedade alguma.