Por que a escrita como interface permite livre expressão dos sentimentos?

por Marcio Berber Diz Amadeu – psicólogo componente do NPPI

Não percebemos, mas apesar de todos os avanços tecnológicos ligados à mobilidade, transmissão de imagem e som e ubiquidade da internet, ainda nos baseamos numa forma antiga de interface para nos comunicar: a escrita, que mesmo tendo cerca de seis mil anos, ainda é capaz de nos surpreender.

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Seja por comunicadores instantâneos, e-mails, mensagens em redes sociais ou mesmo SMS, a escrita ainda permeia todas as nossas relações mediadas pelo computador nos dias de hoje.

O avanço de aplicativos de vídeoconferência (como Skype) ou troca de mensagens via imagens (como o Snapchat) não é suficiente para abalar sua hegemonia nos meios virtuais porque ela possui qualidades únicas como meio de comunicação.

Neste artigo, vamos examinar algumas características da escrita no e-mail como interface, a partir dos e-mails que recebemos ou respondemos diariamente no NPPI – Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática (PUC-SP). E não apenas do ponto de vista psicológico, mas esbarrando também no que é relativo ao campo da interação humano-computador.

Densidade

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Os e-mails que recebemos são densos. Compostos cuidadosamente e com muitos detalhes, muitas vezes revelam uma quantidade de informações, significados e emoções muito maior do que encontraríamos numa conversa face a face.

De maneira geral, escrever o que sente permite ao redator uma elaboração de ideias ricas e que, mesmo demorando mais para ser organizada (afinal pode-se gastar o tempo que for necessário contando algo no papel), a mensagem resultante pode ser mais reveladora do que diversos encontros com essa mesma pessoa.

Por exemplo, se em um processo de psicoterapia presencial eu levar algumas sessões para ter certeza que relatei todos os detalhes de algum acontecimento para o meu psicólogo(a), escrever um e-mail me permitiria relatar a mesma quantidade de informações em apenas uma mensagem que levaria apenas alguns minutos para ser lida (mesmo que levasse várias horas ou dias para ser redigida).

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Claro que essa é uma característica presente especialmente em e-mails de orientação psicológica, mas não deixa de ser uma possibilidade interessante da interface escrita: a de condensar as informações num pequeno espaço. Algo difícil de realizar em uma conversa convencional.

Reflexão

Um dos fatores que permite essa densidade na transmissão das informações presentes num e-mail é a capacidade do redator de refletir sobre o que escreve, enquanto o faz, ou seja, antes do envio da mensagem.

Quando escrevemos temos a possibilidade de ler antes de enviar. É como se pudéssemos olhar no espelho e ver como estamos, e exatamente o que estamos dizendo. Refletir sobre o que escrevemos serve não apenas para corrigir erros, mas também para explicar melhor, colocar detalhes ou mesmo perceber melhor qual o "tom" da nossa mensagem.

É interessante que percebemos essas características até em meios mais dinâmicos como chats. Quem nunca apagou e reescreveu uma mensagem algumas vezes antes de apertar o "Enter"? Refletir sobre o que escrevemos pode ser extremamente benéfico, pois em algum nível estamos nos conhecendo e entrando em contato com a nossa própria linguagem e expressão.

Distanciamento (sem ver a pessoa com quem conversamos)

Não é à toa que "falamos" mais quando estamos escrevendo. Não olhar a pessoa para a qual dirigimos a nossa escrita facilita todo o processo, pois não sentimos o julgamento de outro enquanto transmitimos a informação.

A comunicação escrita permite essa liberdade relativamente maior para expressar o que sentimos. Estando sozinho, ou mesmo diante de janela de chat, não nos sentimos ameaçados pelo olhar alheio. E dessa forma a comunicação acaba fluindo com mais naturalidade.

Compreensão

Como em todo texto escrito, a compreensão e assimilação da informação dependem também de quem recebe. No caso dos e-mails recebidos no NPPI, percebemos que a preocupação com o entendimento do que está escrito não é uma constante em todos os casos. Recebemos mensagens complexas e simples. Algumas com textos rebuscados e outras com linguagem praticamente coloquial.

O interessante, porém, é que percebemos que a compreensão da história de cada pessoa passa por outros campos além da interpretação de texto. Muitas vezes o entendimento dos interlocutores só existe porque há um esforço de ambas as partes e, da mesma maneira que na linguagem falada, os e-mails também são alvos de projeções inconscientes.

Por isso mesmo, não é raro encontrarmos atos falhos nessa comunicação da mesma maneira como encontramos no dia a dia na linguagem falada.

E com a inclusão dos termos do internetês, emoticons e outras características do ambiente virtual, esse universo de comunicação se torna rico em detalhes, mesmo se comparado à escrita tradicional.

E o que mais?

Esta lista não pretende esgotar todas as possibilidades da comunicação escrita, especialmente via e-mail. Antes disso, é uma proposta de reflexão inicial sobre as possibilidades de comunicação escrita neste ambiente virtual que tanto gostamos.

A interface escrita é específica e rica de particularidades. Ao contrário do que se pensa, escrever não é apenas uma redução da conversa coloquial e da mesma forma, os relacionamentos via chats, murais e e-mails não são apenas reduções do relacionamento presencial.

A escrita possui uma dinâmica própria, com qualidades que só ela possui como meio de comunicação. E, apesar de algumas as previsões da ficção científica, da Siri e do Google Glass, tudo indica que o ato de escrever mensagens não irá desaparecer tão cedo.