Entenda os mecanismos da fé

por Roberto Goldkorn

Já escrevi aqui sobre a Fé, em suas nuances e profundas diferenças com o fanatismo. O artigo me rendeu ameaças sem máscaras, inclusive de um " teólogo e pastor evangélico" me ameaçando "entregar-me para os árabes" e me denunciar ao Conselho de Psicologia. Tudo isso porque eu dizia que o fanatismo religioso podia azedar o bom conceito que a fé tinha mesmo entre os ateus e agnósticos. Mas como o assunto está sempre voltando, há igualmente uma vasta possibilidade de abordá-lo de uma gama infinita de ângulos.

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Estou lendo uma biografia do Jung a quem pensava "conhecer", e estou fascinado com a minha ignorância sobre a vida do meu "guru" e ao mesmo tempo pelo brilhantismo do trabalho da autora Deirde Bair (Jung – Uma Biografia, Editora Globo). Há uma fase da vida do Jung que coincide com a tomada do poder pelos nazistas na Alemanha. Apesar de ainda pairar algumas vagas acusações ou suspeitas de que o suíço fosse simpatizante de Hitler e seus seguidores, o que ficou para mim foi a idéia junguiana de que a Alemanha tinha sido "possuída".

O que Jung desejava dizer com seu artigo e palestras é que um "espírito" baixou na Alemanha e tomou conta dela, ou seja, dos seus habitantes. O nazismo com sua loucura, com a sua irracionalidade radical que por um tempo tentou se justificar criando ou recriando algo que "eles" afirmavam ser "ciência", era o "cavalo" para um "espírito" coletivo se apossar de grande parte da população alemã culta e levá-la a uma trágica vertigem que resultou no que todos sabem ou pensam saber muito bem.
 

A Fé é feita desse mesmo material "espiritual", imponderável, etérico, mas poderoso a ponto de mover não montanhas, mas exércitos de seres humanos, lotar estádios, arrasar outros seres humanos ou operar milagres. Mas a Fé e o seu primo perverso, o fanatismo, tem sim um consistente componente cultural/intelectual. Tanto no desenvolvimento das ideologias, como das crenças religiosas que municiam a Fé de grandes grupos humanos há uma base intelectual que de alguma forma tenta "justificar" o investimento pessoal naquela proposta específica. Nós já sabemos que temos dois hemisférios cerebrais. Esses hemisférios funcionam de forma integrada, ou pelo menos deveriam. O hemisfério direito é responsável pela criação de imagens, da percepção espacial, da intuição, e há muitos estudiosos que dizem ser ele o nosso portal mediúnico.

Se o "espírito" da Fé/Fanatismo entra no ser humano certamente será pelo hemisfério direito. Mas qualquer que seja a quantidade de energia espiritual que entre no hemisfério direito, ela precisa se expressar, comunicar a sua "mensagem" para entretecer a trama do fenômeno de massas da fé. E é no cérebro esquerdo, que é cultural, o responsável pela fala, pela comunicação que se instala o que chamamos de substrato cultural da fé, aquilo que a justifica, e a escora por uma teoria ou tese. Por isso que na Alemanha nazista houve tanto esforço para se criar uma "ciência ariana", que ao mesmo tempo em que validava a crença de que eram uma raça superior, destinada a governar o mundo, rebaixava os judeus, ciganos e outras minorias a um status de sub raça, que ficaria melhor sendo varrida dos quintais do planeta. Por isso que as religiões supervalorizam tantos os seus livros sagrados, a sua "teologia", pois é através desses veículos que a Fé ou o fanatismo se "racionalizará' e poderá se espalhar.

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O cérebro direito recebe a "energia", ali ela se potencializa, "possui" o indivíduo/médium, mas se não puder ser "racionalizada" e colocada em palavras, não poderá se difundir e criar o que toda fé ou fanatismo que se preze ambiciona: tornar-se uma expressão de massa. Mas não nos devemos iludir, esse frame cultural, esse texto "sagrado" ou "científico" nem precisa ser tão consistente ou à prova de furos. O "possuído" já está predisposto a aceitar quase qualquer coisa. Jung disse que qualquer coisa pode ser psicoterapia, até cocô de galinha recoberto de pó dourado. Parodiando o velho e imortal mestre, qualquer coisa serve para justificar a fé ou o fanatismo, não precisa ter lógica, bom senso, ser consistente, ter as vírgulas no lugar certo, nem mesmo ter uma origem genuína (uma falsificação barata pode servir).

Quando fanáticos islâmicos dizem aos mártires da Jihad que ao chegar nos céus de Alá cinco mil virgens o estarão esperando, (e eles acreditam), nem tentam questionar (fé não se questiona) o que estaria esperando as mulheres que atualmente também estão se oferecendo ao martírio. As bases culturais que servem como veículo da fé e dos fanatismos são apenas isso veículos para disseminação desse "espírito". Recentemente tivemos um episódio que ilustra bem isso. Os fundadores da denominação evangélica Renascer Sonia e Estevam Hernandes foram acusados pelo Ministério Público (sentados sobre uma montanha de provas colhidas com muito cuidado, pois sabiam que estavam andando no campo minado da fé) de diversos delitos. Coincidentemente foram presos nos Estados Unidos, tentando entrar contrabandeando dólares. Pensam que os fiéis da igreja caíram em prostração por terem sido ludibriados? Claro que não. A fé funciona em seu próprio território, tem as suas próprias leis, e a sua linguagem muito singular. Quando um "espírito" de fé ou de fanatismo encarnam num indivíduo ou numa coletividade os projetam num espaço mágico completamente à parte. Os Kamikazes japoneses que tão jovens brigavam pelo direito de sacrificar as suas vidas em ataques suicidas contra o "inimigo", estavam já em transe, no espaço mágico movidos pela Fé/fanatismo.

Pessoalmente sou uma pessoa de fé, mas sei que a base da fé é a irracionalidade, e procuro balancear fé e razão, até porque a razão também não está com essa bola toda. Uma pessoa puramente racional deve se sentir muito só, muito desamparada. Lembro do Pedro Nava escritor genial, médico, e ateu militante e juramentado. Ele cometeu suicídio. Eu não sei a razão (olhe a tal palavrinha aí de novo), mas posso me dar ao direito de especular. Acho que ele chegou ao limite da sua competência racional para entender o mundo, e percebeu que ainda nem estava no início do caminho. Quando se deu conta de que dentro de sua caixinha de conhecimentos ficava de fora um mundo de interrogações, de dúvidas e de espaços em branco (ou em preto) ele deve ter pirado. Sua Razão não explicava os maiores mistérios da vida, não explicava as emoções humanas tão irracionais, nem a sua própria angústia existencial. A racionalidade é tão arrogante e tão prepotente quanto o fanatismo, pois acha que pode tudo, que sabe tudo e que fora de seu perímetro só há mentira e ilusão. Em resumo acredito que ele chegou no limite de sua arrogância , e não podia dar um passo adiante, pois não tinha aquela loucura que chamamos de Fé, esse "algo" que é irracional, mas tão humano.

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Se estudarmos a história da humanidade de forma desapaixonada, vamos ver que a fé moveu fronteiras, arrasou civilizações, criou holocaustos, construiu monumentos admiráveis, mas no balanço geral acho que trouxe mais dor que alegrias à humanidade.

O que nos falta é um terceiro elemento, regulador, que estabelece limites, dosa, e coloca freios tanto na racionalidade exacerbada como na fé que esteja beirando o fanatismo. A esse terceiro fator podemos chamar de Consciência ou Conscienciosidade. Se não desenvolvermos esse fator, corremos o risco de enfrentarmos um novo nazismo de massas, ou uma era de tamanho domínio cerebral que qualquer emoção extra será punida ou condenada. Mas acredito que essa conquista não deverá ser coletiva e sim individual, por isso se você concorda ou sente-se confortável com essa visão, vamos lá arregace as mangas pois há muito trabalho interno a fazer