Filosofia clínica considera os aspectos sociais e culturais?

por Monica Aiub

Recebi uma questão de um leitor: a filosofia clínica, assim como outras terapias que são pautadas na subjetividade, não seriam ingênuas pelo fato de desconsiderar aspectos sociais e culturais que influenciam fortemente nas escolhas e modos de ser de cada pessoa?

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Devido à questão colocada pelo leitor, escrevo hoje sobre como a filosofia clínica considera aspectos sociais e culturais, e como estes são observados tanto para a identificação do que ocorre com a pessoa, assim como para o levantamento das possibilidades de formas para lidar com as questões trazidas à clínica.

Quando uma pessoa chega ao consultório com uma questão, o primeiro passo é contextualizar a questão trazida. Por que isso? Porque em filosofia não tratamos as questões isoladamente, é importante compreendê-las a partir de seus contextos, e estes são compostos, entre outros elementos, de aspectos culturais e sociais. Há interessantes estudos acerca das relações existentes entre a medicina e a filosofia em suas origens. A escola hipocrática (Hipócrates foi considerado o “pai da medicina”) defendia a necessidade do médico conhecer os contextos “os ventos e as águas da região”, “os hábitos do doente” para ter condições de avaliar o caso e escolher os procedimentos mais adequados.

Alguns dos estudos sobre a mútua influência entre medicina e filosofia, nas suas origens, indicam que a prática de estudar os contextos na medicina antiga é advinda da forma de conhecimento desenvolvida pelos filósofos pré-socráticos para estudar a natureza, e que tal forma influenciou, subsequentemente, a filosofia no período antropológico (Sócrates, Platão), trazendo para as questões referentes à sociedade e ao humano, a mesma metodologia aplicada ao estudo da natureza.

Essas seriam algumas referências iniciais sobre a necessidade de observarmos os contextos, e neles, os aspectos sociais e culturais. Mas especifiquemos a questão, colocada pelo leitor, no âmbito da clínica.

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Assunto imediato

A questão, a queixa, trazida à clínica pela pessoa é denominada Assunto Imediato. A primeira tarefa do filósofo clínico é contextualizar o Assunto Imediato, obter a “história do problema”. Um problema, em filosofia, se não for contextualizado em sua história, corre o risco de ser tratado superficialmente. Na clínica, um Assunto Imediato descontextualizado não pode ser tratado, pois a superficialidade, nesses casos, pode ter consequências graves e imediatas na vida da pessoa. Além disso, são feitas perguntas acerca do Assunto Imediato, não apenas para estabelecer a interseção com o partilhante – paciente – (afinal, nem sempre é fácil colocar suas questões para um desconhecido), mas para conhecer os significados dos termos utilizados.

Como já tratamos em outros artigos, há muitos mal entendidos que são gerados pela interpretação inadequada de termos equívocos. Poderíamos esclarecer tais termos consultando um dicionário ou buscando a origem da palavra? Não. Porque o que nos interessa na clínica é o significado atribuído pela pessoa, naquele contexto, para o termo. Conforme nos mostra John Searle, no livro Expressão e Significado, não há significado literal, independente de contexto.

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Assim sendo, para entender o significado do Assunto Imediato e de sua história, precisamos situar tal história dentro do contexto de vida da pessoa. Para compreender tal contexto, pedimos que a pessoa conte sua historicidade, desde suas primeiras lembranças até o momento presente. E enquanto ela faz isso, coletamos dados sobre os três eixos: Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos.

Como apresentado no artigo Como funciona a prática da filosofia clínica (clique aqui), os Exames Categoriais são formas de conhecer o universo no qual a pessoa está inserida. Aqui, seus aspectos culturais e sociais são considerados não apenas como dados circunstanciais, mas também a partir de suas influências na forma como a pessoa se constitui, se relaciona, lida com o ambiente, se situa no tempo e no espaço. É muito clara, na metodologia da filosofia clínica, a importância dos Exames Categoriais. Sem eles, não há como o filósofo clínico conduzir seu trabalho.

Além disso, ao observar a Estrutura de Pensamento do partilhante – que é o modo como a pessoa se constituiu a partir do que viveu nos contextos observados nos Exames Categoriais (ver artigo Entenda a estrutura de pensamento – clique aqui) – todo o processo de leitura do filósofo clínico ocorre estabelecendo relações com os Exames Categoriais, ou seja, a compreensão do modo de ser – singular, único, subjetivo – de cada partilhante se dá a partir do conhecimento dos contextos através dos quais tal modo foi gerado.

Ainda, no que se refere aos Submodos Informais (estudo das formas usuais que a pessoa possui para lidar com suas questões), também estes são observados em relação aos eixos anteriores. Já os Submodos como procedimentos clínicos – as intervenções do filósofo clínico – são construídos a partir do estudo do todo, considerando os três eixos e suas mútuas relações.

Desta forma, não podemos afirmar, como fez o leitor, que a filosofia clínica desconsidera os aspectos sociais e culturais. Porém, também não podemos afirmar que ela os considera como necessariamente determinantes. Somos determinados por aspectos sociais e culturais ou os determinamos? No artigo anterior, citei Ortega y Gasset, em Meditações do Quixote, “Eu sou eu e minha circunstância”, para mostrar que, ao mesmo tempo, determinamos e somos determinados por tudo o que nos rodeia, inclusive os aspectos sociais e culturais.

O peso disso na vida de cada pessoa varia de acordo com inúmeros fatores. Há pessoas que são determinadas pelos aspectos sociais e culturais. As influências são tão fortes, e recebidas de modo tão intenso por essas pessoas, que elas não conseguem pensar o mundo e a si mesmas de forma diferente. Outras pessoas, ainda que tenham sofrido a imposição de aspectos sociais e culturais advindos de seus contextos de origem, transformaram tais aspectos, recriando a sociedade e a cultura ao seu redor. Outras, ainda, vivem como se fossem completamente independentes de tais aspectos. Eles estão lá, algumas pessoas lhes cobram que deveriam viver segundo esses aspectos, mas… e daí? Elas vivem como se os aspectos culturais e sociais não lhes dissessem respeito.

Quem está certo? Quem está errado? Não me parece ser uma questão de certo e errado, de bem e mal. Creio ser uma questão de adequação entre as necessidades internas e externas. Se os aspectos culturais e sociais atendem suas necessidades, é possível ser determinado por eles e viver bem com isso. Se não atendem, é possível modificá-los? Se for, você quer modificá-los? Se não for, você pode viver de modo a atender suas necessidades, independentemente deles?

Mas há outras questões, ainda mais complexas, que permeiam a pergunta do leitor. De onde vem essas necessidades internas? Seriam elas adquiridas a partir destes mesmos aspectos culturais e sociais? Tornando a pergunta mais clara: minhas necessidades são minhas ou são fruto da cultura na qual vivo? Se eu vivesse em outra cultura, teria outras necessidades? Como não aderir aos apelos do contexto social e econômico no qual estamos inseridos? É o caso de aderir ou não aderir?

Essas questões, muitas vezes, surgem na clínica. Não deve haver, por parte do filósofo clínico, um posicionamento anterior. Seu trabalho é provocar a pessoa a pensar no que se passa com ela, a compreender o ambiente no qual se insere, para que possa escolher com clareza e por si mesma as opções que considerar mais adequadas para si.

Isso significa que o filósofo clínico trabalhará no sentido de reforçar e sustentar as ideologias vigentes? Não. Significa que seu trabalho é provocar a pessoa a pensar. Não substituir a ideologia vigente por uma ideologia do filósofo clínico, que passaria, se fosse o caso, a traçar os melhores caminhos para a pessoa. Nem aderir cegamente – porque uma possível “ingenuidade” derivada de respeitar a subjetividade do outro não lhe permite enxergar – às ideologias vigentes. Seu papel é provocar a reflexão, é pensar junto, é analisar tanto a forma de ser da pessoa que o procura, e os aspectos que a tornaram assim, como o mundo no qual a pessoa vive. Seus instrumentos de trabalho? A metodologia filosófica.

Referências Bibliográficas:
ORTEGA y GASSET, J. Meditações do Quixote. Rio de Janeiro: Libro Ibero-Americano, 1967.
SEARLE, J. Expressão e Significado. São Paulo: Martins Fontes, 2002.