Desconhecimento sobre depressão leva a discriminar quem sofre dela

por Monica Aiub

Dentro de nós: as respostas sobre a depressão, documentário de Mariana Bottan, aborda a depressão na perspectiva daquele que sofre, ao mesmo tempo em que ouve profissionais sobre o problema.

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Quando Mariana me procurou para gravar uma entrevista para o documentário, considerei sua proposta de extrema importância. Qual o objetivo daquela jornalista ao realizar um documentário independente sobre depressão? "Ajudar as pessoas que sofrem", foi a resposta dela.

Quando o documentário ficou pronto, outra surpresa: o resultado. De fato, ela conseguiu abordar a questão de modo original e na perspectiva daquele que sofre. Então, propus à Mariana que fizéssemos debates a partir da exibição do documentário. Se o objetivo é auxiliar aquele que sofre com a depressão, seus amigos e familiares, é importante que a ideia circule e propicie o debate.

Iniciamos, na última sexta-feira, nossos debates. Que grata surpresa! Pessoas interessadas em pensar a questão da depressão e suas múltiplas faces; pessoas partilhando seus depoimentos, sua história com a depressão… qual o nosso objetivo? O mesmo, ainda: auxiliar as pessoas para que possam lidar com suas questões.

Este é também o objetivo da filosofia clínica. O protagonista do processo clínico é o partilhante – pessoa que procura um filósofo clínico. Justamente por isso é chamado partilhante, porque é ele quem partilha sua historicidade, suas questões, sua existência com o filósofo clínico. Este tem na metodologia filosófica a sua contribuição para a partilha. Permitir ao partilhante que se aproprie de um conhecimento de si e do mundo que o rodeia, que conheça a gênese e o desenvolvimento das questões que lhe inquietam, que tenha clareza sobre suas necessidades e possibilidades, assim como as necessidades e possibilidades do mundo a seu redor são objetivos da clínica filosófica.

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Pensar junto com o outro, exercitar a escuta atenta, estar disposto a partilhar são tarefas imprescindíveis ao filósofo clínico. Seus conhecimentos filosóficos são colocados à disposição para a investigação rigorosa e necessária da realidade vivida pelo partilhante, assim como para o exame das possibilidades existentes para que a pessoa possa lidar com suas questões. E lá estávamos nós, em meio ao debate, pensando juntos. E deste pensar, muitas questões. Destaco, aqui, algumas delas.

O documentário, apesar de apresentar as diferentes formas de tratamento, inclusive o uso de medicamentos, parece privilegiar formas alternativas de tratamento, em especial as terapias e a meditação. "As pessoas devem evitar medicamentos?" – foi uma das questões. É importante destacar que não há uma resposta universal para esta questão. Algumas pessoas precisam necessariamente tomar medicamentos, enquanto outras não devem fazê-lo. Para saber se é ou não o caso de tomar medicamentos para tratar a depressão, é preciso consultar um médico, e descrever com detalhes aquilo que se passa: o que vive, sente, pensa, faz etc. O diagnóstico e as perspectivas de tratamento são apresentados ao paciente pelo médico.

Filosofia da mente e psicoterapias

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No livro Filosofia da Mente e Psicoterapias (WAK, 2009), ao tratar da causação mental, ou seja, como os estados físicos interferem nos estados mentais e vice-versa, abordei o que ocorre quando um médico ou terapeuta, influenciado pelas teorias da mente nas quais acredita, parte dessas para escolher as melhores formas de tratamento para seu paciente. Se o médico for adepto de um materialismo radical, apostará, muito provavelmente, nos medicamentos ou em outras formas de intervenção direta nos estados físicos. Se o médico for adepto de uma teoria dualista, provavelmente apostará na associação entre medicamentos e terapia; e assim sucessivamente.

Há casos em que a medicação é imprescindível, é perigoso não tomá-la. Há casos em que ela não é necessária, e outros em que ela não deve ser tomada, pois se o for, será prejudicial à pessoa. Repito, quem avalia a necessidade ou não de medicamentos é somente o médico. Mas ele só poderá fazê-lo acertadamente se seu paciente descrever exatamente o que se passa, o que consegue ou não fazer, detalhes de sua rotina, de seus pensamentos, de seus sentimentos, de seu cotidiano…

É preciso, obviamente, tempo e disposição do médico para a escuta, assim como disposição do paciente para expor seu relato. Além disso, será necessário considerar uma correta compreensão da linguagem da pessoa, para tal o médico deverá esclarecer os pontos que lhe parecerem confusos ou ambíguos, assim como observar os contextos a partir dos quais a pessoa relata o que sente. Como já citado anteriormente, em outro artigo, Figueiró, em Dor e Saúde Mental (Atheneu, 2004), descreve as diferentes maneiras como a dor é relatada e tratada em diferentes culturas, destacando a importância daquele que trata observar aspectos sociais e culturais do paciente.

Se o médico é quem pode cuidar da questão medicamentos, qual o papel de outros profissionais? Qual o papel do filósofo clínico?

A filosofia clínica nasce com Lúcio Packter, pensador brasileiro cuja formação inicial é na área médica. Packter observa que a medicina possui instrumentos significativos para cuidar das doenças, mas não possui instrumentos para tratar a questão do sofrimento. O sofrimento que temos diante da morte, das perdas, das limitações cotidianas.

Assim, enquanto o médico possui instrumentos para lidar com a doença, o psicólogo com as questões psíquicas e comportamentais, o filósofo clínico possui uma metodologia que permite tratar as questões existenciais. "Perdi meu chão", "Nada do que era importante faz sentido para mim", "Não há o que eu possa fazer diante disto", "Não sou mais a mesma pessoa", "Não consigo viver com isso", e muitas outras expressões que denotam questões existenciais, questões para as quais não temos respostas, não sabemos o que fazer. Este é o campo de atuação do filósofo clínico.

Se o partilhante não sabe o que fazer, o filósofo clínico também não. Ele não possui respostas prontas para as questões. Seu papel é pesquisar e pensar junto com o partilhante, as possibilidades. É auxiliá-lo a construir sua existência a partir daquilo que lhe é dado, dos elementos e instrumentos que possui. É auxiliá-lo, também, a desenvolver novos instrumentos, necessários às novas questões que se colocam.

Outro ponto fundamental no debate foi a percepção do quanto desconhecemos o que diz respeito ao mental e, em especial, os diferentes transtornos mentais. Mais do que isso, o quanto esse desconhecimento traz discriminação, prejuízos, incompreensão àqueles que sofrem.

Banalização dos transtornos mentais

O processo de naturalização dos transtornos mentais os torna linguagem cotidiana. Não ficamos mais tristes, ficamos deprimidos; não ficamos agitados, ficamos maníacos; não sonhamos, deliramos… Esse mesmo processo de naturalização banaliza as questões, e gera incompreensões terríveis àqueles que sofrem com os trantornos. Nos depoimentos, pudemos observar que muitos familiares não compreendem, acham que basta desejar e a depressão será superada, afinal, todo mundo, um dia, já ficou "deprimido"; alguns empregadores confundem o funcionário que está deprimido com alguém que está acomodado e não quer trabalhar. O conhecimento acerca dos processos que acometem uma pessoa com depressão, se pretendemos auxiliá-la, é de extrema importância.

Mas a questão radical levantada diz respeito às cobranças sociais, às quais muitas vezes não respondemos, mas que traçam padrões de como se deve viver, sentir, pensar…

Há lugar para a tristeza na nossa sociedade?

Há lugar para ser diferente daquilo que se espera socialmente?

Como lidar com as divergências entre as formas de vida vigentes e nossas necessidades?

Como ser e valorizar a si mesmo e ao outro num mundo onde o valor central é a produtividade?

Entre tantas questões, não encontramos uma única resposta, mas tantas quantas pessoas existentes naquele ambiente. Contudo, o caminho ficou muito claro: "Espaços como este, que permitem falar sobre estas questões, partilhar o que se pensa, já são um grande passo!".

E então, leitor, quais espaços você possui ou propicia, que permitem a conversação sobre as questões do existir?

Para saber mais:

AIUB, M. Como ler a Filosofia Clínica. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Filosofia da Mente e Psicoterapias. Rio de Janeiro: WAK, 2009.
_____ (org). Conceitos que sentem, afetos que pensam. Rio de Janeiro: WAK, 2013.
CARVALHO, J. M. Diálogos em Filosofia Clínica. São Paulo: FiloCzar, 2013.
FIGUEIRÓ, J. (org). Dor e Saúde Mental. São Paulo: Atheneu, 2004.
PACKTER, L. Semiose. São Paulo: FiloCzar, 2014.
Dentro de nós: as respostas sobre a depressão – www.dentrodenos.com.br
Filosofia Clínica: Instituto Interseção – www.institutointersecao.com.br