Vivemos na ditadura da felicidade, estar triste equivale a adoecer

por Monica Aiub

No artigo anterior (veja aqui), apresentei algumas questões derivadas do debate sobre o documentário Dentro de Nós: as respostas sobre a depressão, de Mariana Bottan. Prossigo, aqui, com uma questão também derivada do debate, e já abordada em outro momento, no artigo Buscar felicidade nós modos de vida atual pode ser uma armadilha (veja aqui).

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Retomo a questão dada à sua íntima relação com os contextos cotidianos e com o fato de a depressão ser considerada a "doença do século XXI". Qual é a questão? A felicidade.

Qual a relação entre felicidade e depressão?

Ao tratar sobre como alguns conceitos da neurociência foram incorporados em nossa linguagem comum, João Teixeira, no livro Filosofia do Cérebro, aponta para um dado significativo de nossa linguagem hoje: não ficamos mais tristes, ficamos deprimidos. Esse uso comum do termo depressão para estados como a tristeza não é meramente uma questão de linguagem. É uma questão conceitual.

Não há espaço para a tristeza em nossa sociedade. Ainda que falemos muito de situações tristes, calamidades, injustiças, violência, tais situações são banalizadas e é traçado um "limite do aceitável" para entristecer-se com elas. Morte, limitações, frustrações, doenças também são banalizadas. Há um momento certo para entristecer-se, afinal todo mundo fica triste, e um caminho comum para lidar com a tristeza e "sair dela" o quanto antes. Supere, pense positivo, procure um médico, tome medicamento… enfim, receitas para superar aquilo que "todo mundo supera".

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Contudo, há situações na vida em que a questão não é superar algo e conviver com isso, num movimento interno. Há situações em que a tristeza será o elemento fundamental para que possamos transformar nossas vidas, para que possamos rever os caminhos que escolhemos para construir nosso existir, para organizar nossa sociedade.

Se simplesmente eliminarmos a tristeza com uma felicidade artificial, como já abordado em artigo anterior (veja aqui), não conseguiremos sequer perceber a necessidade de mudança. Isto não significa que devamos optar pelo caminho do sofrimento, da dor, como uma medida, uma regra. Significa, simplesmente, que é preciso observar as próprias emoções e como elas se relacionam com aquilo que vivemos cotidianamente. É preciso observar também as próprias crenças, e qual a relação delas com o real, assim como com a condução de nosso agir.

Não existe uma receita, uma medida, um único caminho para viver. Não existe uma única opção válida. Há muitas e diferentes formas de viver, e elas são validadas pela relação que estabelecemos com o mundo e com os outros que coabitam este mundo conosco. Nossas emoções, entre as quais a alegria e a tristeza, são elementos importantes a serem considerados, mas não há um estado único e imutável que defina o quanto devamos ser alegres ou tristes, felizes ou infelizes.

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Para mensurarmos os graus de felicidade de um grupo ou de uma população, não podemos fazê-lo corretamente se esta felicidade for gerada artificalmente, com drogas ou medicamentos, ou ainda com crenças que afastem a citada população de uma relação com o real, com o vivido cotidianamente. Não podemos, também, estabelecer critérios universais para tal mensuração. Podemos fazê-lo em nossas vidas singulares? Podemos exigir de nós mesmos um estado de constante felicidade?

Obviamente, o leitor deve estar observando que não abordo os graus de tristeza considerados normais, aceitáveis em nossa sociedade, pois eles têm uma curta duração. Por exemplo, diante da morte de alguém que amamos, temos um tempo determinado como aceitável para o luto. Após esse tempo, a vida deve continuar pois, afinal, "todo mundo morre um dia". Diante do término de um relacionamento, de um projeto frustrado, e muitas outras situações, o mesmo se dá.

Como a tristeza em geral é vista pelos outros?

É comum encontrar pessoas que afirmam: "me sinto mal em falar para os outros sobre minha tristeza, ninguém aguenta mais me ouvir"; "as pessoas fogem de mim porque estou assim"; "meus amigos dizem pra eu parar de falar nisso e me convidam para beber".

Precisamos, então, encontrar espaços. Alguns espaços de ajuda mútua, em grupos temáticos, são por vezes organizados, mas o mesmo ocorre nesses espaços: há um limite do aceitável, um grau de normalidade para as emoções. Às vezes, mesmo em processos psicoterápicos, a dor e o sofrimento de uma perda não encontram espaço para existir, sendo sugerido um tratamento medicamentoso para "esquecer".

Por outro lado, alguns estudos, como por exemplo os de Eric Kandel, indicam que quanto mais rememorarmos o vivido, mais elementos teremos para lidar com a dor e o sofrimento. Será que isso funciona dessa maneira?

Em filosofia clínica observamos que isto depende de uma série de fatores constituintes do modo de ser e de lidar com as questões que a pessoa constituiu no decorrer de sua vida. Não há como afirmar previamente se é o caso de esquecer ou relembrar, de anestesiar ou provocar uma catarse, de fugir ou de encarar o problema, e muitas outras opções. Cada caso é único e deve ser conduzido de acordo com suas especificidades. A dor, o sofrimento, a tristeza de cada um de nós tem não apenas uma razão de ser como é, mas também uma história de constituição, que quando conhecida propicia as indicações das melhores formas para se lidar com eles.

Extirpar as dores da existência sem compreender sua constituição e seu papel na vida de cada um pode se tornar, ao invés de um movimento de libertação, um elemento gerador de mais dores, ou até um impedimento para a continuidade da vida. Da mesma maneira, alimentar e defender a dor, sem uma compreensão desta, pode ser fatal.

Mas o leitor deve estar se perguntando: o que isso tudo tem a ver com depressão? Já citei em outros artigos o livro de Horwitz e Wakefield, A tristeza perdida, no qual os autores mostram o quanto confundimos tristeza e depressão, justamente por não nos permitirmos vivenciar nossos estados de tristeza. Na sociedade da ditadura da felicidade, estar triste equivale a adoecer, e necessita de cura. Será este o caso? Não seria melhor deixar que a tristeza cumprisse seu papel de alerta para cuidarmos daquilo que necessita ser cuidado em nossas vidas?

Neurologicamente, a ausência total de dor coloca uma pessoa em perigo, pois ela não tem indicativos orgânicos para se proteger. Lent, em seu livro Cem bilhões de neurônios? demonstra que nos raros casos em que uma pessoa não sente dor por uma deficiência congênita, "a vida cotidiana torna-se um enorme risco" (p. 250). Se a dor do corpo é tão necessária, por que a tristeza, ou a dor da alma, não poderia ter uma razão para existir? Quais são as razões de nossas dores, de nossas tristezas, de nosso sofrimento, e o que fazer com relação a eles? Eis a questão que parece, de fato, nos interessar.

Referências Bibliográficas:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia de pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Para entender filosofia clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2008.
_____. (org.) Conceitos que sentem, afetos que pensam. Rio de Janeiro: WAK, 2013.
HORWITZ, A.; WAKEFIELD, J. A tristeza perdida: Como a psiquiatria transformou a depressão em moda. São Paulo: Summus, 2010.
LENT, R. Cem bilhões de neurônios? Conceitos fundamentais de Neurociência. São Paulo: Atheneu, 2010.
TEIXEIRA, J. Filosofia do Cérebro. São Paulo: Paulus, 2012.