Como você expressa e interpreta suas vivências?

por Monica Aiub

Comumente surgem, na clínica, diferentes formas de expressão: músicas, poesias, pinturas, contos, fotos, diagramas, filmes, gestos, expressões, sonhos, entre outras formas não necessariamente discursivas.

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Quando tais formas são utilizadas pelo partilhante (paciente) como veículos de expressão, são chamadas, em filosofia clínica, dados de semiose.

O que faz com que alguém utilize uma forma ou outra para sua expressão? Como, habitualmente, você se expressa? Faz alguma diferença expressar-se por um veículo ou por outro? A mudança de veículo traz alterações no significado dos conteúdos expressos? Como é possível significar essas formas de expressão?

Quando um partilhante informa ao filósofo clínico que faz uso de outro dado de semiose além da fala, é comum que o filósofo clínico solicite, em algum momento da clínica, desde que possível, conhecer esse dado de expressão. Por quê? Simples. Porque diferentes formas podem expressar diferentes conteúdos, significados, intensidades, ou revelar detalhes que a fala não revelaria.

Compreender o significado da linguagem falada já é algo complexo. Uma frase não possui significado em si mesma, é compreendida dentro de toda uma rede de significação, relacionada aos contextos dos falantes e dos ouvintes, não apenas no momento em que é pronunciada, mas a partir das crenças, da história de vida, dos interesses e de muitos outros elementos em questão.

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Em filosofia clínica, cada frase de um partilhante é compreendida a partir dos contextos em que é pronunciada, e também a partir dos contextos de vida do partilhante, observados em sua historicidade e estudados em seus exames categoriais (clique aqui e leia). Além disso, é observada sua relação com os aspectos da estrutura de pensamento (clique aqui e leia) e dos *submodos. Em se tratando de elementos importantes à compreensão das questões trazidas pela pessoa, ou à compreensão do modo de ser, pensar, sentir e agir dela, os significados são aprofundados nos procedimentos de enraizamentos, nos quais são pesquisados significados de termos, processos de construção de conceitos, relações e distinções entre termos, e outros aspectos. Os conteúdos e formas apresentados a partir de outros dados de semiose também são pesquisados com o mesmo cuidado.

História de vida e dados de semiose

Algumas vezes, o partilhante não consegue contar sua historicidade discursivamente, necessitando fazer uso de outros dados de semiose para compor seu histórico de vida. Nesse caso, os dados são organizados cronologicamente e contextualizados pelo próprio partilhante, que conta os contextos nos quais aquele dado surgiu ou foi utilizado, e apresenta ao filósofo clínico sua forma de significá-lo. Ainda que o filósofo clínico compreenda aquele dado de maneira distinta, o que vale é a interpretação apresentada pelo partilhante. Por exemplo, se o partilhante traz uma música, não importa a representação que o filósofo clínico faça desta, mas como o partilhante a representa e significa.

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Para exemplificar melhor, trago o caso de uma senhora que atendi, que não conseguia contar sua historicidade, mas relatou que possuía uma trilha sonora de sua vida. Solicitei a ela que levasse as músicas que compunham essa trilha sonora. Ao ouvirmos as músicas e as contextualizarmos, ela foi lembrando de sua historicidade, e contando com maior fluência, não apenas o que a música significava, mas os acontecimentos e vivências dos períodos referentes a cada música.

Você, habitualmente, faz uso de outros dados de semiose para relatar suas questões cotidianas às pessoas de suas relações? Como essas pessoas compreendem o que você tenta expressar? Você tem uma trilha sonora, um roteiro de teatro ou cinema, um romance, poemas, pinturas, desenhos ou quaisquer outras formas de expressão capazes de contar sua história? Como seria contá-la, por esses instrumentos, a alguém? Acrescentaria significados ou não?

Quando os novos dados de semiose são apresentados no processo divisório (quando a historicidade do partilhante é dividida em partes para que possam ser trazidos mais dados sobre o histórico relatado), os dados apresentados também são organizados cronologicamente, e pode-se fazer a divisão a partir dos próprios dados. Por exemplo, diante de uma sequência de fotos, organizadas cronologicamente, o filósofo clínico pede que o partilhante contextualize a primeira delas, que apresente os significados ali constantes. Em seguida, faz o mesmo com a segunda. Na sequência, pede que conte o que mais ocorreu entre a primeira e a segunda foto.

Também a título de ilustração, trago o caso de um rapaz, escultor, cujo processo divisório foi realizado em seu atelier. Ele escolheu algumas peças e, ao tateá-las, contava os momentos de sua história em que as esculpiu. Cada traço de cada escultura trazia um dado novo, e novos significados à sua historicidade. Outro caso curioso foi o de uma moça que, ao contar sua historicidade, parecia não ter emoções. Quando trabalhamos, nas divisões, os seus poemas, lá estavam as emoções relativas a cada evento contado.

Você expressa diferentes elementos de sua vida por diferentes dados de semiose? O que expressa por qual veículo? Há elementos que só consegue expressar por um veículo específico? Isso varia de acordo com as relações? Com o tempo? Com as circunstâncias?

Se esses dados surgirem durante os procedimentos de enraizamentos, já virão contextualizados, localizados no histórico do partilhante. Assim, o filósofo clínico pesquisará o significado, que será traçado, exclusivamente, pelo partilhante.

Além da utilização de dados de semiose como veículos de expressão, também podemos observar diferentes dados de semiose utilizados como submodos, ou seja, como maneiras de lidar com as questões. Trataremos, aqui, do submodo Tradução.

Tradução

Tradução, considerado como submodo em filosofia clínica, consiste no processo de transposição de um dado de semiose para outro. Por exemplo, quando traduzo da linguagem discursiva para a poética, ou da linguagem corporal para a música, e assim sucessivamente.

Para considerarmos esse processo como um submodo, é necessário que a transposição gere uma movimentação existencial. O fato de traduzir de um dado de semiose a outro pode provocar uma ressignificação, ou uma compreensão mais profunda de um problema. Pode, ainda, fazer com que o problema perca ou ganhe peso e dimensão na vida da pessoa.

Assim como na transposição de um tom musical a outro ou na tradução de uma língua para outra, a tradução de um dado de semiose a outro poderá apresentar alterações no significado dos conteúdos. No caso da transposição de um tom musical a outro ocorre uma alteração na amplitude da onda sonora. Os intervalos entre as notas musicais são os mesmos, o ritmo é o mesmo, o encadeamento harmônico é o mesmo, mas o som não é o mesmo, podendo provocar reações diferentes nos ouvintes.

No caso da tradução de uma língua para outra, as palavras não são as mesmas, a estrutura das frases não é, necessariamente, a mesma, mas o dito numa língua deve ser o dito em outra. Para isso, o tradutor deveria saber pensar muito bem a mesma ideia em línguas diferentes, para traduzir de uma a outra. Faz diferença afirmar o mesmo em inglês, português ou japonês? Sob vários aspectos, sim. Há muita diferença. Ainda que consideremos somente os significados dos conteúdos, estes podem se modificar no processo de tradução, não por erro ou incompetência do tradutor, mas por não existir, necessariamente, uma palavra ou uma estrutura sintática equivalente à utilizada na língua original na língua para a qual se traduz.

Da mesma forma, quando o partilhante traduz de uma linguagem a outra aquilo que se passa com ele, é possível que o traduzido ganhe novas intensidades, novas dimensões, novos significados e, com isso, movimentações existenciais ocorram.

Para exemplificar, cito o caso de uma partilhante que necessita traduzir para poemas o que vive em suas relações. Quando traduz o que é vivido em seus poemas, compreende de outra maneira, traduz novamente para uma linguagem discursiva e, somente depois disso, é capaz de comunicar ao outro o que pensa, sente, acredita ou deseja.

Você, habitualmente, faz traduções? Elas funcionam como maneiras de lidar com seus problemas? Caso afirmativo, o resultado disso é favorável?

O fundamento do submodo tradução encontra-se no fato de existir uma mesma lógica subjacente, que no processo de simbolização explicita a estrutura do vivido, do pensado, do sentido e, por isso, permite novos e diferentes níveis de compreensão. Ainda que tratemos de dados abstratos ou sensoriais, não traduzíveis em linguagem discursiva, há uma lógica capaz de expressar tais conteúdos.

Seria a mesma lógica que organiza os discursos racionais aquela utilizada na composição musical? Seria a mesma lógica que utilizamos nos sonhos? Seria a que fazemos uso para compor poemas? A lógica matemática poderia ser aplicada a emoções ou a fatores da subjetividade? Haveria uma lógica capaz de ler nossas sensações, nossos dados sensoriais?

*Em filosofia clínica, as formas, os modos que utilizamos para lidar com nossas situações são denominados submodos.