Qual é a relação entre filosofia e bem-estar?

por Monica Aiub

Que relações podemos estabelecer entre filosofia e bem-estar? Se os filósofos são os representantes da inquietação, do questionamento, da dúvida, de que maneira poderiam contribuir para nosso bem-estar? Como, em situações de crise existencial, a filosofia poderia nos auxiliar a lidarmos com nossas questões? Não é ela quem cumpre o papel de retirar a estabilidade do universo, de provocar o movimento? É possível conciliar bem-estar e a instabilidade característica do constante questionamento filosófico? Seja a filosofia o que for, está presente em nosso mundo e a ele necessariamente se refere.
(…)
Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, o destino comum da humanidade.

(Karl Jaspers)

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Quando pensamos em bem-estar, vem-nos a ideia de estabilidade, de equilíbrio, de solução das crises, de ausência de problemas ou ao menos o conhecimento e o domínio de formas para lidar com os eles. Em contrapartida, associamos mal-estar a momentos em que não sabemos quem somos, como devemos agir, o que podemos fazer. Nesses momentos ocorre como se não pudéssemos decidir, escolher, como se não fôssemos autônomos em nossos posicionamentos. Às vezes nos perdemos de nós mesmos, noutras vezes buscamos desesperadamente uma resposta.

Nessa busca, muitas formas de ajuda se colocam. Entre elas, a de um amigo que nos ouve sem nos interromper, que nos acolhe sem nos julgar, sem, de imediato, dizer que estamos errados, que a vida não é assim, que criamos uma expectativa ideal, que não nos adaptamos, que exigimos demais, que trabalhamos demais, que somos desmedidos, que nossa loucura, insanidade ou insensatez atingiu níveis descontrolados, que somos insensíveis, irracionais, egoístas e outras observações que não nos ajudam, e sem as quais talvez estivéssemos mais próximos de um bem-estar.

Filosofia clínica

Nos consultórios de filosofia clínica, encontramos pessoas em busca desse amigo, em busca de si mesmas, de suas próprias vidas, tentando organizar suas ideias, avaliar as situações por si mesmas e, a partir disso, reencontrar sua autonomia. O filósofo clínico posiciona-se como esse ouvinte atento e acolhedor, com abertura suficiente para não julgar, com disposição para provocar o pensar sem aconselhar, sem apresentar respostas prontas. Ele é alguém interessado e disposto a conhecer o ser humano que o procura, alguém com quem se pode pensar junto, alguém que respeita profunda e absolutamente a legitimidade de cada um ser o que é.

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Mas como a filosofia se tornou uma atividade terapêutica? Poderia a filosofia auxiliar alguém a lidar com suas crises? Como conceitos e sistemas filosóficos poderiam levar uma pessoa a reencontrar sua autonomia? De que maneira os ensinamentos dos antigos filósofos poderiam ser úteis para a vida contemporânea? A Lógica aristotélica, a Dialética hegeliana ou o Cogito cartesiano poderiam ser terapêuticos? Os sistemas filosóficos são, muitas vezes, contraditórios entre si. Com qual sistema trabalhar para auxiliar a pessoa a encontrar seu bem-estar?

Não se trata de escolher, nesta atividade terapêutica, entre os diferentes sistemas filosóficos, um que possa oferecer soluções, respostas à pessoa. A filosofia não oferece soluções ou respostas prontas. Ela é muito mais uma atitude, uma postura diante da vida. Um questionamento sobre o que são as coisas? Como são? Por que são? E, principalmente, sobre possibilidades de outros modos de ser.

No consultório dos filósofos clínicos, as questões do cotidiano são enfrentadas não com um sistema filosófico, mas com métodos filosóficos: das lógicas à metafísica; da epistemologia à filosofia política; da ética à estética; dos Pré-Socráticos aos contemporâneos, a filosofia é exercitada em atitude, construindo conceitos a partir de nosso próprio tempo, de nossa cultura, de nossa realidade. A atitude filosófica exige que se questione o que parece óbvio, que se pense em possibilidades, que se recorte, articule e sobreponha os elementos, construindo conceitos.

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Equilíbrio integral

A ideia de colocar a reflexão filosófica a serviço da atividade de ajuda-ao-outro não é novidade. Na Antiguidade, a concepção de universo como cosmos, como ordenação, permitia que se buscasse uma ordem universal à qual o indivíduo se harmonizaria, promovendo assim, a saúde – que era sinônimo de equilíbrio integral entre mente, corpo, sociedade e natureza. A doença era sinal de um desequilíbrio que necessitava ser restaurado. A função do filósofo era buscar o conhecimento e, com ele, restaurar o equilíbrio. O bem-estar estava intimamente relacionado à conquista do equilíbrio, advindo do conhecimento de si e do cuidado de si, mas cuidar de si significava cuidar da polis, ou seja, pensar não apenas no indivíduo, mas num indivíduo em relação com a sociedade e com a natureza.

No século XX, passadas as Revoluções Científicas ocorridas na Modernidade, propostas as teorias da relatividade e do quantum, questionados os princípios da lógica-clássica passando a considerar-se a contradição, a complexidade, os vários planos de realidade, o terceiro incluído, não é mais possível pensar no universo como cosmos, sendo mais apropriado concebê-lo como caos. Contudo, o conceito de saúde como equilíbrio, presente na Antiguidade e substituído na Modernidade pelo conceito de "ausência de doença", é resgatado, buscando-se novamente a saúde como equilíbrio. A OMS (Organização Mundial da Saúde) define como saúde o "completo bem-estar bio-psico-social".

Na Antiguidade esse equilíbrio era pautado pela ordem do cosmos, e hoje, como nos equilibrar diante de um universo caótico? É preciso construir esse equilíbrio considerando as constantes relações entre as estruturas internas do sujeito e o mundo circundante, que geram um incessante movimento tanto no sujeito quanto em seu entorno. Dessa forma, apesar dos conceitos de universo, de sociedade, de ser humano serem distintos, a atitude e o papel da filosofia mantêm-se os mesmos: conhecer para cuidar. Contudo, uma vez que não possuímos uma ordem cósmica ou divina que nos sirva como padrão, como pensar esse equilíbrio?

Se afirmarmos que o parâmetro para encontrarmos nosso equilíbrio está na subjetividade, corremos o risco de construirmos uma sociedade excessivamente egoísta, egocêntrica, onde há um sujeito que detém o saber e o impõe aos demais. Ou onde há vários sujeitos que possuem o saber, cada qual a seu modo, e destroem-se uns aos outros em guerras cujo único objetivo é a autoafirmação.

Mas se conseguimos pensar que o parâmetro está num sujeito inserido no mundo, em relação com outros sujeitos; se conseguimos observar as constantes relações entre a estrutura interna desses sujeitos e seu entorno e estabelecemos como parâmetro ético a aceitação da legitimidade do outro – ainda que inteiramente diferente do eu, torna-se possível pensar na construção de um equilíbrio com flexibilidade, com mobilidade suficiente para lidar com a diversidade e com a singularidade. É essa postura de abertura ao diálogo, de respeito à legitimidade do outro em sua singularidade, de construção constante de modos de ser saudáveis – porque equilibrados e em movimento, que caracteriza a atitude filosófica presente na filosofia clínica.

Por que filosofia clínica?

Ela é chamada clínica considerando o sentido originário do termo grego, onde Klinikos, Kline, corresponde ao leito do enfermo. A clínica médica, desde a Antiguidade, caracteriza-se por observar o leito do paciente, ou seja, o ser humano a receber cuidados. Os textos da escola hipocrática destacam a importância do médico conhecer o contexto desse paciente: as águas, os ventos da região; os hábitos da sociedade e do indivíduo, tendo como objetivo restaurar o equilíbrio perdido. Para tal, era fundamental conhecer os elementos internos ou externos ao paciente, prováveis causadores desse desequilíbrio. Para a escola hipocrática, da mesma forma que para a concepção socrático-platônica, um ambiente desequilibrado ou uma sociedade desequilibrada gerariam desequilíbrios na mente e no corpo de seus cidadãos.

Considerando a clínica como uma terapêutica que possui como centro a pessoa e não a doença; considerando a filosofia como uma atitude de construção de conceitos a partir de um problema de uma realidade singular, a filosofia clínica coloca-se como uma terapêutica centrada na pessoa e no respeito à sua singularidade, dispondo-se a pensar sobre o problema apresentado pela pessoa, a partir do plano de realidade singular daquela pessoa.

Entre as atividades de ajuda-ao-outro, a filosofia clínica destaca-se por não trabalhar com teorias prévias, tipologias ou conceitos de normalidade. Aquele que procura ajuda é a medida, e como medida é quem determina de que maneira poderá ser auxiliado. Pensar junto com o outro é o trabalho do filósofo clínico, norteado pelo respeito à legitimidade do modo de ser deste outro.

Partilha

O que busca ajuda é chamado partilhante, porque é aquele que partilha, que toma parte em, que participa ativamente de todo o processo clínico, compartilhando sua vida e suas questões com o filósofo clínico. Por sua vez, o filósofo clínico acolherá o partilhante e suas questões e partilhará com ele o conhecimento produzido pela filosofia, auxiliando-o a refletir sobre suas questões e dificuldades, a levantar e estudar possibilidades, a definir, construir e percorrer caminhos. Não se trata de teorizar sobre o sofrimento alheio, mas de auxiliar o outro a lidar com suas questões, diante das circunstâncias e possibilidades existentes.

Cabe destacar que o filósofo clínico conhece os limites e especificidades de sua atuação e, caso identifique sinais e sintomas que indiquem a necessidade de um trabalho interdisplinar (o que estuda durante sua formação), encaminhará – mesmo que por precaução, para mera exclusão de possibilidades, ou ainda para um trabalho interdisciplinar – o partilhante para um profissional competente naquela área de atuação.

O resgate do papel terapêutico da filosofia é iniciado na década de 80, com o movimento denominado filosofia prática. Seu ponto de partida é um questionamento: se a psiquiatria e a psicologia utilizam a filosofia em seus métodos, por que um filósofo não poderia utilizar a metodologia própria da filosofia para ajudar as pessoas em suas questões cotidianas? O filósofo assume a função de cuidador, investido do conhecimento produzido em toda a história da filosofia.

No Brasil, o filósofo gaúcho Lúcio Packter, inspirado no trabalho da filosofia prática, propôs a filosofia clínica: um instrumental específico, próprio, adequado à realidade brasileira, e diferente dos trabalhos em filosofia prática. Packter recorta e seleciona do conhecimento filosófico, a metodologia necessária para desenvolver a atividade de ajuda-ao-outro, organizando-a de maneira flexível, de modo que não construiu uma teoria adequada a diversas pessoas, mas um instrumental de pesquisa que permite a construção do trabalho para cada pessoa em especial.

Neste trabalho, o bem-estar é bem-estar subjetivo. Não é uma situação estática de acomodação; não é o resultado de um processo alienante. O bem-estar é encontrar o equilíbrio no movimento da vida. É conhecer a si mesmo e a seu entorno, é ser capaz de situar-se diante das mais diversas circunstâncias, é construir a si mesmo e ao mundo com autonomia, responsabilidade e respeito às necessidades da existência num mundo em constante movimento. É tomar para si a tarefa de construir seu próprio modo de ser.